7. Fogo (parte 2)

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Porãsy observou a sua respiração no vidro do carro onde estava recostada. A cada vez que expirava embaçava um pouquinho, o que dissolvia depois. Com seu rosto quase grudado no vidro, via as plantações em volta da rodovia por onde passavam.

Uma extensão quase sem fim de uma planície toda verde, sempre igual: a cana-de-açúcar tomava conta de tudo até onde a vista alcançasse. Um inferno verde de plantas ainda pequenas de um lado e já grandes, prontas para a colheita, do outro, mas sempre iguais.

Pensou na história contada pela professora do quinto ano, da covardia para com os animais, sempre que se empreendia a colheita da cana no estado de Mato Grosso do Sul. Cobras, tatus, preás, alguns já raros tamanduás, emas e outras aves diversas, todos queimados no processo.

Lágrimas queriam vir aos olhos dela com a lembrança. Ainda que nunca tivesse testemunhado, conseguia visualizar de forma clara, as cenas. Conseguia ver o casal de téu-téus (1), seu ninho no chão, pai e mãe cuidando dos ovos e depois dos filhotes pequenos. A menina sempre gostou muito de observá-los em seu cuidado.

Mas então chegava a época da queima da cana para a colheita. Os trabalhadores se colocavam em volta de toda a plantação e ateavam fogo ao mesmo tempo. As labaredas nas folhas secas se alastrando, formando uma nuvem de fumaça, calor vindo de fora para dentro, a morte junto, de mãos dadas. Os animais não tinham para onde fugir.

Depois, quando as chamas tivessem devorado tudo e restasse só a cana, sem a folhagem externa, e tudo esfriasse, os trabalhadores rurais iam com as ferramentas para cortar e ajuntar a cana para ser recolhida depois e, em meio a tudo, os animais mortos.

Os téu-téus e seus filhotes. Os pais poderiam voar, ir embora, escapar, se quisessem, mas não abandonavam os filhotes. O carvão em forma de aves, de répteis e até de mamíferos.

Porãsy imaginou a mamãe ema queimando e morrendo, depois seus filhotes sob ela. Os tatus assados vivos, e se lembrou de uma cena que tinha visto uma vez: uma mamãe tatu com quase uma dezena de filhotinhos grudados a ela e uns nos outros, formando uma fila. Ela chegava a sentir a dor, a fumaça, o calor queimando o pulmão, a morte se aproximando.

Porãsy se afastou do vidro e balançou a cabeça. Não queria que a vissem chorar. Não ali, não junto aos pais e às irmãs, que ocupavam o mesmo carro que ela, ao voltar da escola na cidade. Também já estavam chegando ao local onde, um dia antes, estavam os barracos. Agora, uma imensidão preta.

***

Daquele dia, a imagem que ficou na memória de Porãsy foi a criada por ela, para preencher a lacuna de algo que não viu, mas que tinha sido a pior tragédia de sua vida e do que ela sempre se lembraria. Ela contaria depois a história daquele dia dessa maneira:

Naquele dia, não houve histórias de Kerana e nem de seus filhos. Não houve história nenhuma. Não houve tempo nem para o tereré da tarde, sequer para o banho no rio.

Tudo começou com uma nuvem no céu. Uma nuvem que parecia a velha e conhecida fumaça da queimada de cana, mas a nuvem cresceu e cresceu. Tomou conta de todo o lado norte do acampamento deles.

Depois foram as labaredas. Apareceram no horizonte junto à fumaça, por sobre a cana seca. Mas não era tempo da queimada da cana. Não houve o preparo para o controle do fogo. Vinha em direção aos barracos. Tinha fome.

Ventava muito no dia e a direção do vento era para o lado dos nossos barracos. Não teve tempo para o corpo de bombeiros chegar. Não teve como apagar. Em pouco tempo, todos os barracos se resumiam a um pó preto.

Não havia mais roupas, sapatos, documentos, só aquele pó. Também não tinha mais nenhum alimento, nenhum objeto escolar ou brinquedos feitos de garrafa pet, só mesmo aquela fuligem escura, a fumaça cobrindo tudo, a dificuldade de respirar.

Foi tudo muito rápido. Quando se viu, já estava chegando. Só deu tempo para retirar as crianças e idosos dos barracos, e fugir para o único lugar onde poderiam se colocar a salvo: no asfalto, no meio da rodovia e, então, em meio ao choro das crianças e ao desespero dos adultos, tudo acabou.

***

Já na beira do asfalto, com as coisas da escola depositadas no chão e sentada junto ao seu material, Porãsy estava desolada. Lembrou-se de uma outra imagem:

Um barulho chamara a sua atenção. Um casal de téu-téus saltitava na grama perto da divisa com a cana-de-açúcar. Ela sentiu, naquele instante, o seu coração apertado. Eles deviam ter um ninho no solo por ali, em meio à grama, junto à vegetação rasteira. Naquele dia, ela ergueu uma oração, em pensamento, ao Criador dos téu-téus. Que Ele permitisse que os filhotes já tivessem nascido e voado antes da próxima queima da cana.

***

Os pais ficaram muito abalados com o incêndio e a destruição dos seus barracos em Apyka'i. Na verdade, toda a comunidade ficou. Mas eles eram guerreiros e resistência era o sobrenome daquela etnia.

Os dias que se seguiram foram dias de recuperação, reconstrução, reorganização e recomeço. Enquanto a mídia local insistia que tinha sido um acidente, os indígenas, o Ministério Público Federal e parceiros do exterior exigiam uma investigação mais apurada para que o governo e a polícia federal dessem conta das causas e apontassem culpados. Estes acreditavam, como os indígenas, que o incêndio havia sido criminoso.

Os pais de Porãsy não podiam e não tinham como ficar parados em situações como essa. Pediram licença prêmio (2) na prefeitura, a que tinham direito, para que pudessem dar conta de ajeitar o que fosse preciso para a comunidade.

Viajaram, divulgaram, conseguiram ajuda em alimento, roupa e para a reconstrução dos barracos. Também conseguiram o apoio de ONGs, de voluntários e de outros amigos e parentes, lutadores como eles. Elaboraram cartas, documentos e abaixo-assinados, endereçados a diversas entidades para que o maior número de pessoas soubesse do ocorrido.

A imprensa internacional e representantes de diversas organizações de apoio aos indígenas estiveram no local. Órgãos como os Direitos Humanos, UNICEF, ONU, dentre outros, se pronunciaram, divulgaram seu posicionamento a favor da comunidade, pediram esclarecimento ao governo sobre o que estava acontecendo no MS, ajudando com o necessário para que os indígenas de Apyka'i pudessem, pelo menos, ter um lugar para se abrigarem da chuva e frio intenso da região naqueles dias.

Não se sabe quem comentou sobre isso primeiro e de onde surgiu a ideia, mas a decisão foi unânime. Se tinham de reerguer seus barracos de lona preta, plantar de novo suas roças de mandioca, batata, abóbora e milho, e se tinham de cortar galhos e troncos de árvores para fixar as precárias moradias, então isso não seria mais na beira da estrada. Se era necessário fazer isso, e com certeza era, seria nas suas terras. No seu tekoha.

E, assim, em questão de semanas, os barracos estavam mais uma vez erguidos, mas, dessa vez, do outro lado da rodovia e da cerca, na terra tradicional do povo, não mais na beira da estrada. Entretanto, ainda assim, dentro da chamada "fazenda" do latifundiário.

Porãsy guardava tudo no coração e na mente. Convivera com isso a vida toda e sabia que não tinha acabado.


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Notas de rodapé

1- Téu-téu – Também conhecido como tetéu, terém, terém, espanta boiada, abibe-do-sul e teru-teru, o pássaro quero-quero é uma ave de porte médio a pequeno, que pertence à família dos Charadriidae. O som emitido por essa ave é semelhante a "tero-tero", daí veio o seu nome popular.

2- Licença prêmio: benefício estatutário do qual o servidor público faz jus a três meses de licença a cada cinco anos de efetivo exercício de exercício efetivo e ininterrupto, sem prejuízo da remuneração.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora