7. Fogo (parte 1)

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Tudo aconteceu de forma inesperada e muito rápida. Porãsy estava na sala de aula, em uma aula de história, com uma das suas professoras mais queridas, quando bateram na porta. Helena, este era o nome da professora, colocou o giz que tinha na mão no suporte do quadro e se dirigiu à porta.

Porãsy notou que era uma das coordenadoras e, a princípio, não deu muita atenção ao fato. As coordenadoras sempre apareciam nas salas com recados, orientações e informações. Vez por outra, era uma notícia ruim, mas quando isso acontecia, na maioria das vezes, os alunos já sabiam antes, e não era mais novidade.

Aluno é uma raça de ser muito bem-informada, sempre foi. Antes que as notícias chegassem à liderança da escola, elas já estavam correndo, sendo espalhadas nos corredores, banheiros, quadra, cantina e lanchonete. Mas não aquela notícia. Sobre aquela notícia os alunos não souberam antes, porque não deu tempo. Tudo começou quando já estavam na sala, assistindo às aulas.

Então, quando a professora se virou e a chamou, o coração de Porãsy deu um salto. A professora nunca a chamava. A maior parte do tempo, ela passava despercebida na sala, quieta no seu canto, afastada dos Karaí. Não se envolvia muito com eles porque não queria ser incomodada também.

— Pega seu material e vai com a coordenadora, Porãsy. Ela vai conversar com você — disse a professora.

Todos sabem como são essas coisas de quando alguém chega na sua sala e fala para você ajuntar suas coisas e ir com a coordenadora. Passa tudo por sua cabeça. E sempre é o pior que predomina os pensamentos. Estes variam desde atentado terrorista, como o 11 de Setembro, até apocalipse zumbi. Você pensa de tudo. Foi o que aconteceu com Porãsy naquele instante.

Seguindo a orientação da professora, ela se levantou e foi com a coordenadora, seu coração aos saltos, as mãos geladas. Enquanto caminhavam pelo corredor em direção à coordenação, a coordenadora começou a informar Porãsy do que estava acontecendo:

— Aconteceu uma tragédia, Porãsy. — O coração da garota deu saltos intensos, os pensamentos fugiam do seu controle. Imediatamente imaginou que algum membro da família tinha morrido. Lágrimas começaram a se formar. — Um incêndio na região do lugar onde vocês moram.

Seu coração queria pular para fora. Ela ouviu um zumbido dentro de sua cabeça.

Se aquela coordenadora conhecesse o seu povo e o modo como lidam com notícias difíceis, ela saberia que não poderia trazer uma má notícia dessa forma. Na cultura do povo da menina, eles creem que não podem assustar as crianças e adolescentes. Eles não podem levar um susto grande, pois corre-se o risco do pássaro que se assenta em seu interior, a alma, voe e vá embora, provocando a morte.

Mas, enfim, talvez pela cara assustada de Porãsy, o tremor do seu corpo, pelas pernas que ficaram pesadas e a dificuldade em mudar os passos, a coordenadora tenha percebido que a menina ficara abalada, então foi rápida em terminar a explicação.

— Mas não houve nada com seus pais e com sua irmãzinha. Eles estão bem e neste instante se encontram na coordenação aguardando você e a sua irmã Yvy Rajy. Acho que vão levá-las pra casa. A vocês duas.

Porãsy olhou para ela ainda assustada. A coordenadora não entenderia se a adolescente explicasse que não eram só seus pais e irmãzinha, a família dela naquele acampamento indígena, então não disse nada, mas, ainda assim, e de forma egoísta, sentiu-se mais aliviada quando soube que estes estavam bem.

Adentrou a sala da coordenação e constatou que sua irmã Yvy já se encontrava lá. Amandy veio a seu encontro e a abraçou rapidamente nas pernas.

Quando viu Porãsy, sua mãe, a que manifestava seus sentimentos sempre de forma mais expansiva, a abraçou falando angustiada, na língua deles:

— Filha, aconteceu uma tragédia. Pegou fogo em tudo. Queimou tudo.

Tudo bem, Porãsy concordou internamente, sua mãe também não apresentara o jeito ou comportamento que se esperava de uma legítima Kaiowá. Ela também trouxera as notícias de forma espalhafatosa, mas a filha a conhecia. Sabia como ela era, como ela lidava com as situações delicadas da vida, quando essas se manifestavam. Então, quando ela lhe disse aquilo, não se assustou na mesma intensidade de quando ouviu da coordenadora.

— Como assim, mamãe? — Porãsy perguntou em língua portuguesa, talvez receosa da professora achar que falavam dela, porque isso era sempre assim: todo Karaí acha que os indígenas estão falando deles quando se comunicam uns como os outros em sua própria língua.

— Vamos indo, que a gente conta no caminho.

A mãe se lembrou da presença da coordenadora e comunicou a ela:

— Nós vamos levar as meninas. Vamos ter que resolver as coisas lá, decidir o que fazer, para onde ir, e precisamos que elas estejam com a gente.

— Ah! Claro, tudo bem. Com certeza. Elas podem ir com vocês, sim. — E, se voltando para as duas irmãs, completou: — Vocês vão com seus pais. As duas já estão com os materiais, né?

— Eu estou — Yvy Rajy respondeu mais rápida.

— A Porãsy já está com os dela, porque eu pedi que ela trouxesse — a coordenadora tentava mostrar que pensara na frente dos outros.

As irmãs saíram com os pais e só quando estavam no carro, e este já saindo, Itabira começou a falar:

— Ainda bem que vocês estavam na escola e não viram aquilo. Aconteceu um incêndio na cana de açúcar seca, aquela plantação de cana que fica do lado dos nossos barracos. Atingiu os barracos. Queimou tudo.

— Como assim? — Porãsy não conseguia entender. Ou melhor, se recusava a acreditar.

— Colocaram fogo na cana antes do momento certo; antes da época certa de se colocar fogo. O incêndio se alastrou, ficou incontrolável, veio em direção aos nossos barracos e os atingiu.

— Foi questão de minutos e tudo estava destruído — Dhiacuí completou.

— E quem fez isso? Porque, se foi assim, foi um incêndio criminoso.

— Ainda não se sabe onde começou ou quem provocou, filha — o pai respondeu —, mas é claro que desconfiamos que foi um incêndio provocado.

— Os Karaí, é claro. E a mando dos fazendeiros, temos certeza — para a mãe das garotas não havia dúvidas: tinha sido um crime para destruir os indígenas e os fazendeiros eram os culpados.

— Alguém se feriu? Tem alguém hospitalizado? — Yvy Rajy perguntou, sendo mais rápida e mais sensata que Porãsy. Esta ainda estava ali inerte, sem ação.

— Não — Itabira respondeu. — Mas perdemos tudo. Tudo mesmo.

— E onde está todo mundo? — Porãsy perguntou, quando conseguiu falar. — As pessoas do acampamento... Se ele queimou tudo, onde as pessoas estão?

— Por enquanto, na beira da rodovia. Mas por isso viemos pegar vocês. Estamos pensando no que fazer, ainda — disse a mãe. 

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Continua 


Essa parte do incêndio na Terra Indígena Apyka'i, infelizmente, aconteceu de verdade. Aqui tem um link para um vídeo que tem imagens da tragédia. Assista para você ter uma dimensão do que aconteceu. 

Imagens do incêndio, e de suas consequências, em Apyka'i (ano 2013) 



Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora