24. Um encontro de dimensão eterna (parte 1)

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A voz falou como um trovão, mas era bem nítida. Todos na casa ouviram e entenderam com clareza que a pessoa que estava na sala, fosse quem fosse, procurava por Porãsy.

Porãsy começou a chorar. Não conseguiu evitar. A menina tremia tanto, que achava que todos ouviam seus pés baterem no chão, a quilômetros de distância. Queria abrir um buraco na parede da casa e sair dali, mas o medo a imobilizava e, claro, ali não era como no barraco de lona preta, para que pudesse fazer o que intentava. Também não conseguia mover um dedo. Seus movimentos eram só os involuntários, provocados pelo tremor.

— Calma, mana! — a irmã mais velha cochichou em seu ouvido. — Calma. Eu estou aqui. Vou cuidar de você.

Porãsy não sabia onde a irmã arranjava força e coragem, ainda que só para abraçá-la e lhe falar ao ouvido, consolando-a. A coragem de Porãsy, se ela algum dia tivera alguma, acabara. Estava a ponto de morrer de medo e susto.

A sala continuava escura. A chuva e vento entravam com ferocidade pela porta recém derrubada. Tudo que Itabira via diante de si, nos momentos em que a luminosidade dos raios clareava a sala, era um rapaz, de cabelos não tão curtos, calça jeans e camisa, sob um poncho e uma espécie de saia de cor branca. Nas mãos, ele tinha uma vara ou um bastão.

Então, como que percebendo o estado de medo e apreensão imprimido ao dono da casa e pai da menina procurada, o rapaz recém-chegado se sentou. Assim que ele se aquietou, pela porta, em meio à agitação externa, entrou uma arara azul, uma arara sagrada.

— Aí está você — o rapaz disse, estendendo o braço, onde a arara pousou majestosamente, balançando as asas para se livrar das gotas da chuva. — Cheguei a pensar que não havia encontrado o caminho.

Os sons emitidos pela arara em seu braço foram em resposta à fala do rapaz. A arara não só falava com ele, como pareceu lhe chamar a atenção sobre alguma coisa, em uma espécie de reprimenda. Um diálogo acontecia entre o rapaz e a ave, no entanto, o pai de Porãsy só entendia o que o jovem falava.

— Tá bom, tá bom. Sei que, sem você, eu estaria perdido, mas é que você sumiu assim que a tempestade começou a cair forte.

Mais uma vez a arara "falou" com ele e mais uma vez ele a respondeu.

— Tá, vou arrumar isso. Passe para a cadeira enquanto faço isso.

Então o rapaz, até ali desconhecido do pai de Porãsy, devido à escuridão da noite, estendeu o braço para que a arara saísse dele e se dirigisse à parte superior da cadeira, em um voo breve. Isso tudo diante do olhar assustado de Itabira, que não entendia o que estava acontecendo ali. Em sua mão ele erguia uma faca de cozinha.

O jovem fez uso do seu bastão, estendendo-o em direção à porta caída no chão, disse algumas palavras que Itabira também não entendeu. Para a surpresa dele, viu, nos momentos da claridade dos raios, que a porta se ergueu sozinha e se colocou no local original. Itabira quase caiu para trás quando viu isso acontecendo. Ele estava muito, mas muito assustado, mesmo.

— Pronto. Já os prendi do lado de fora — o estranho comentou com a arara. — Está bom para você, assim?

A ave respondeu com o barulho característico de sua espécie. Um som conhecido de Itabira. Ele mesmo já vira araras "conversando" muitas vezes, nos galhos superiores das árvores mais altas da aldeia, mas, ainda que o som fosse conhecido, é claro que ele não entendeu o que a arara falou.

Com o vento e a chuva presos do lado de fora, o rapaz aproximou-se da cadeira onde estava o pássaro. Antes de se sentar, no entanto, disse mais daquelas palavras desconhecidas, com o bastão erguido. Com isso, um vento aquecido percorreu toda a sala, passou pela arara e circulou o corpo e cabeça do desconhecido, agitando os seus cabelos. Ao final, eles estavam completamente secos e na sala não havia mais resquícios da água que entrara quando a porta estivera no chão. Então ele se sentou de novo.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora