9. Novo dia (parte 2)

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Pirakuá era uma aldeia perfeita para quem gostava da natureza e de ter espaço. As casas ficavam longe umas das outras, tinha muita mata, árvores, roças. Em alguns momentos, o ônibus passou por aglomerados de casas de sapé, em outros por casas de alvenaria. Porãsy viu dois campos de futebol durante o trajeto.

Ela continuava abatida da gripe, se recuperava de forma lenta. Seu corpo ainda doía, bem como a garganta. A poeira que o ônibus levantava e que os atingia, ainda que dentro do ônibus, não iria lhe fazer bem, ela tinha certeza disso. Ficou quieta olhando tudo e logo estava cochilando.

A menina não percebeu quando adormeceu, mas acordou com uma freada brusca do ônibus que deixou seu coração acelerado. A parada repentina indicava que mais alunos entrariam. Ela se endireitou no banco e tentou ver quem era. A porta se abriu e foi então que ela os viu.

Eles entraram pela porta do ônibus, um após o outro, em movimentos suaves, como em câmara lenta. Como se, de repente, o tempo passasse mais devagar.

Primeiro, entrou o menininho loiro, seus cabelos em curtos cachos dourados que voavam e balançavam ao vento. Tinha a aparência de uma criança com seus seis anos. Era lindo e usava uma camiseta de uniforme igual aos outros pequenos que iam no ônibus, então Porãsy deduziu que ele iria para uma das escolas na aldeia, mas ele era um contraste, se comparado a elas. Sua pele branca e olhos claros não eram comuns na comunidade.

Mais uma vez, Porãsy se questionou o que uma criança com aparência de karaí fazia em uma aldeia indígena.

E, então, o outro entrou.

O rapaz, com uns quatorze ou quinze anos, ajudou o pequeno, amparando-o na escada enquanto ele subia. O menininho sorria.

O coração de Porãsy acelerou quando ele a encarou. Com certeza era o menino loiro que ela vira no dia que chegara e o outro... Xe Járy! ela clamou em pensamento... o outro era o mesmo que vira surgir no mato, quando lavava suas roupas no acampamento indígena onde morava.

O rapaz que entrou após o menininho era forte, moreno, bronzeado. Bem diferente do garotinho que ele acompanhava e de quem parecia cuidar. Ele também usava uma camiseta de uniforme da escola da cidade, igual às dos novos amigos que iam com as irmãs.

Mas se ele era de Pirakuá, e estudava em Bela Vista, por que estava em Apyka'i naquele dia? Porãsy se sentiu um pouquinho mais aliviada quando se convenceu, afinal, de que ele não era um ãygwêry. Porque, se ele estava no ônibus, indo para a escola, como os outros, ele era um garoto normal. Bem estranho, mas normal, sem dúvida.

O garotinho escalou o último degrau e continuou rumo à catraca, e foi nesse instante que o mais velho se virou para observar o ônibus e seus passageiros. E seus olhos se deram com os de Porãsy.

Então o coração dela voltou a bater acelerado. O garoto era esplendidamente lindo. Uma beleza antinatural. Ele era maravilhoso. Possuía um encanto para além da normalidade, e a já sentida sensação de que ele não era humano tomou conta de Porãsy.

Uma outra coisa chamou a atenção nele. Ele usava um estranho colar que não passava de um fio e algo pendurado nele, como um osso, ou um dente. E como um feitiço, os olhos dela foram atraídos para aquele colar. Ela sentiu como que uma força saindo dele, a prendendo, paralisando. Era como uma estranha energia invisível e paralisante.

E, assim, ela se convenceu, de novo, de que ele não era humano. Não podia ser.

Não existiam humanos tão perfeitos. E aquele olhar... ele a encarava como se quisesse lhe devorar, no real sentido da palavra. Ele a observava como se ela fosse a sua próxima refeição. Não era um olhar simples de admiração ou curiosidade. Era um olhar de desejo, talvez até um pouco de ódio.

Os dois passaram pela catraca e vieram pelo corredor do ônibus em direção a ela. Quer dizer, não era bem em sua direção. Como ela estava sentada mais na frente, parecia que vinham para o local onde se encontrava, mas, para o seu alívio, passaram por ela e continuaram, para se sentarem mais atrás. Porãsy se tranquilizou.

Só percebeu que continuava olhando-os até se sentarem, quando, ao voltar sua cabeça e olhos, percebeu que Guarasyáva e a prima a observavam de seu banco.

— Eles são estranhos, né? — disse, em um cochicho, Guarasyáva.

— Quem são eles? — Perguntou Porãsy, em um misto de curiosidade e medo.

Ela queria muito que não estivesse louca ou que eles não fossem fantasmas ou coisas assim. Seria terrível se fossem.

— Ninguém sabe ao certo — e menina mais velha fez uma cara de segredo e mistério. — Tem mais ou menos um mês que se matricularam e começaram a ir na escola, mas não falam com ninguém e ninguém sabe onde moram.

— Como assim? — insistiu Porãsy. — Vocês viram onde eles subiram, no ônibus. Vocês devem saber quem mora por ali.

— Pior que não — continuou Mayra, a menina de quinze anos. — Nem sempre eles sobem no mesmo lugar, e, no lugar onde subiram hoje, que é o lugar onde eles mais sobem, só tem mato e o rio, é claro. É a região do Pirakuá, o buraco do peixe. Não tem casa por ali.

— Psiu! — Yvy Rajy fez sinal para que as meninas se calassem. — Eles estão olhando para vocês. Parece até que estão ouvindo.

— Não tem como estarem ouvindo — insistiu Porãsy. — Eles estão sentados três bancos atrás da gente.

— Mas parecem estar. Eles estão concentrados na conversa de vocês.

Com isso, Porãsy se virou para trás, para averiguar o que a irmã falava.

O que ela queria mesmo era contradizer sua irmã, dizer que estava errada, mas, quando os visualizou, constatou que pareciam mesmo observá-las, e, de repente, percebeu que os dois a olhavam.

E não era um olhar de amigos. Era, muito mais, um olhar de um psicopata fixando sua própria vítima.

De novo, um arrepio passou por todo o seu corpo, seus pelinhos da pele se arrepiaram, seu coração acelerou ainda mais. Quase podia escutar suas batidas.

— Porãsy, vira pra frente! Para de dar bandeira! — disse a irmã.

A irmã só sussurrou, mas Porãsy viu que eles escutaram, ou sabe-se lá o que fizeram. Ela só sabia que eles entenderam o que ela falou, e a menina viu a cara de ódio dos dois. Era como se eles a conhecessem ou tivessem ouvido falar dela em algum lugar, e tivessem tido a certeza, ali, de que era ela, em uma confirmação forte.

Porãsy virou bem rápido para frente, seu coração querendo sair pela boca. Ela sentia as batidas em seus ouvidos. Só percebeu o quanto estava tremendo quando sua irmã colocou a mão dela sobra as suas e apertou, falando:

— Nossa, Porãsy! Você está tremendo!

E ela tremia mesmo. Tremia muito. Por instantes, de forma incontrolável.

— Calma, minha irmã. São só duas pessoas, um garoto e um menino. São estranhos, sim, mas é só isso.

Mayra se abaixou sobre as irmãs e sussurrou.

— Depois eu conto para vocês o que as pessoas falam sobre eles. Mas se acalma, senão vou ter que desistir disso.

Porãsy tentou se acalmar e não quis mais olhar para os dois. Era tudo muito sinistro.

Depois de uma meia hora, talvez nem isso, o ônibus parou na escola da aldeia. Uma daquelas escolas que tinha só até o quinto ano. Os pequenos desceram em algazarra.

A adolescente notou que o menino loiro também desceu, ficando no ônibus só o garoto que o acompanhava. Sentiu um pouco de alívio, mas não muito. Por instantes, achou que os dois, o adolescente e o menino, tinham alguma coisa a ver com o que a Guarasyáva falara sobre o seu nome, só não conseguia achar a conexão.

Então o ônibus saiu da aldeia e foi para a cidade. Porãsy tentou se concentrar na paisagem e esquecer o resto. Minha imaginação anda acesa demais. Devo estar assistindo a muitos filmes de suspense e terror, ou talvez seja o efeito das histórias do vovô. Preciso esquecer e superar tudo isso, racionalizou.


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora