27. Na caverna com os irmãos monstros (parte 2)

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Por instantes, Kauã a observou de perto e ela não soube interpretar aquele olhar: parecia um misto de compaixão e desconfiança. Então ele deu um suspiro fundo, se levantou e saiu para os fundos da caverna. Voltou em seguida, com uma pequena cabaça enfeitada com desenhos geométricos.

— Toma — disse.

Porãsy se moveu violentamente, virando o rosto e trancando os lábios em uma resoluta recusa em tomar daquela estranha bebida. Temia o mal que o preparado pudesse fazê-la, mas estava presa e sem alternativas.

Então, com violência, o garoto a obrigou a tomar. Prendeu o corpo dela com o dele e segurou seu rosto, tampando o nariz. Assim, ela teve que tomar o chá, ou não teria como respirar. Logo após engolir o líquido agridoce e estranhamente morno, ele a liberou. Ela se agitou, procurando ar, e lágrimas rolaram de seus olhos arregalados.

— Confie em mim — ele disse, agora com voz suave. — Você precisa das propriedades desse chá em seu corpo para estar fortalecida para o que enfrentará.

— O que você quer dizer com isso? — Porãsy perguntou, mas ele nada respondeu, continuando a observá-la.

A bebida era estimulante, disso teve certeza imediata, mas, logo em seguida, seus olhos foram como que abertos, como se um véu espesso se esgarçasse, e ela começou a ouvir, ver e sentir a vibração da vida em seus mínimos detalhes. O mundo se tornou mais limpo, mais claro. As cores mais nítidas, os sons mais puros.

Com a ação da bebida no corpo, Porãsy passou a vivenciar e sentir eles: os animais. Desde o menor deles, como as formigas que cortavam folhas de árvores fora da caverna, as aves que sobrevoavam o local, até o tatu dentro de um buraco próximo e muitos outros. A sensação foi tão avassaladora, que ela temeu estar enlouquecendo, mas, como veio, ela aos poucos aceitou sua nova visão, era como se antes não existisse Porãsy e agora essa parte fosse viva e pulsante dentro dela.

Com isso, uma outra coisa iluminou em sua memória: a Porãsy original conhecia as plantas e se comunicava com animais e, a partir daquele momento, ela soube que também poderia realizar essa façanha. Os sons emitidos por vários deles pareciam estar tentando animá-la, dizer que estavam com ela, torcendo por ela. Pelo menos, foi isso que entendeu.

Kurupiry sorriu ao examinar o rosto dela, viu suas pupilas se dilatarem, sua face enrubescer, seus lábios avermelharem-se. Seu corpo inteiro se vitalizava com o efeito da bebida. Ele tentava a todo custo suplantar seus desejos, desviou o olhar do corpo da jovem e sentou-se no chão, cruzando as pernas. O silêncio era quebrado apenas pela respiração de Porãsy.

— Agora que vê o que antes lhe era negado pela carne, tem melhor compreensão do que sentimos e do que somos — ele disse. — Porãsy, repetidamente, geração após geração, somos caçados e combatidos por todos, nossa maldição é injusta e nos fez párias solitários.

Porãsy escutava o tom mavioso da voz dele, como o bater de asas de um beija-flor. Ela o enxergava como ele era, um deus deslocado, solitário e com medo. Não compreendia de onde vinha essa empatia repentina, temeu que estivesse num feitiço de dominação, mas buscou dentro de si e era a Porãsy de sempre. Achou estranho e tentou mais uma vez soltar-se, mas não conseguiu.

— Solte-me! — ela disse. — O que quer que esteja pensando em fazer comigo, não dará certo. Você e seus irmãos são a soma do mal do mundo e...

Kurupiry soltou um grito de raiva e frustração, assustando-a. Seus olhos estavam marejados e ela não sabia o que pensar. Eles eram monstros... não eram?

— Eu poderia facilmente matá-la! Mas não é da minha natureza fazer isso. Sou o deus da fertilidade, porém, nunca me foi dado amar e ser amado. Desde minha criação meus desejos mais selvagens foram satisfeitos, mesmo sabendo que poderia ter escolhido outras formas de agir. Por ódio de quem nos perseguia tanto eu quanto meus irmãos somos a soma de tudo o que vocês são, mas nós, mesmo amaldiçoados, temos função e posse nesse patamar.

— Você está me confundindo! — a garota disse. — Vocês são maus, estão prejudicando a humanidade desde os primeiros humanos. Como pode falar que não são culpados por seus crimes?

— Pelo mesmo motivo que uma criança não é culpada pelos erros de seu pai! — ao dizer isto ele a calou. — Existe um motivo para a existência de todos nós, inclusive a sua, Porãsy. Mas, pense que a liberdade de escolha existe e o que eu e meus irmãos mais queremos é liberdade.

Porãsy permaneceu calada. Kurupiry continuou:

— Existe uma forma de acabar com essa maldição e, para isso, precisamos de sua ajuda!

Ele continuou expondo seus pensamentos e seu plano, tocando em partes do coração de Porãsy. Ela não sabia o que falar. Encostou-se melhor na parede da gruta e se pôs a pensar sobre o que lhe era mostrado. Ao final da conversa, ele se levantou e, num último gesto, a raiz que a amarrava firme à parede lhe soltou os punhos. Kauã se virou para a entrada, desaparecendo na escuridão. Ele ainda tinha uma missão para realizar.

Porãsy estava livre. Precisava sair dali e seguir seu destino. Aos seus pés, no chão úmido, estavam depositados enfeites diversos: pulseiras, colares, tornozeleiras, dentre outros. Ela pegou-os e sentiu a magia que emanava deles. Sem saber como, tinha certeza de que eram confeccionados da palmeira pindó, pintados com tinta de jenipapo. Eram lindos. Porãsy colocou os adornos e seguiu seu caminho.

Em algum momento da noite que passara na caverna com Kurupiry, após tomar o chá, Porãsy se lembrou e reafirmou sua decisão. Se ela fazia parte de algo que considerara por muito tempo como sendo uma lenda, mas que agora era muito real, agiria conforme estava determinado, ainda que não soubesse a que fim tudo aquilo a conduziria. Se ela era a pessoa que salvaria seu povo dos terríveis monstros lendários, o faria, custasse o que custasse. Se fosse necessário o sacrifício da própria vida, a entregaria.

***

No fundo da caverna, Jasy observava o adolescente com pernas e mãos amarradas, que jazia desacordado no solo. Um presente de Kaja'a a Aô-Aô.

— Ele e outros seres humanos estavam pescando em minhas águas sem minha permissão — a senhora dos seres aquáticos dissera, ao trazê-lo para eles. — Capturei um deles para o irmão de vocês, o Aô-Aô. Espero que esses seres desrespeitosos aprendam a não mais vagar em meio território.

Kurupi lhe dissera que conhecia o garoto. Ele se chamava Sérgio e estudava na mesma escola que ele, na sala da Porãsy.

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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora