1. Porãsy (continuação)

345 42 12
                                    


O dia do aniversário de Porãsy chegou e passou sem festa, sem aglomeração. A mãe fez um bolo só para os de casa. Agradeceram a Deus por sua vida, cantaram "Parabéns" e foi só. A garota ganhou alguns presentes baratos, como brincos e colares, algumas roupas e um par de tênis. Este último fora ela quem escolhera e, por isso mesmo, era do jeito que queria.

A promessa de algum evento mais significativo ficou para o próximo mês, quando a irmã mais velha também completaria anos. Comemorariam, assim, os dois aniversários em um só dia: os treze anos de Porãsy e os quinze de Yvy Rajy. Estavam no mês de março e os pais acreditavam que poderiam angariar o dinheiro necessário para fazerem a festa para suas duas filhas. Poderiam até fazer as três festas juntas — a pequenina Amandy completaria cinco anos em maio.

Com essa informação sendo divulgada de casa em casa e nas rodas de tereré, as pessoas começaram a se agitar na comunidade. Aguardavam a festa e imaginavam como ela seria. Queriam música, guaxirê (1) refrigerante e bolo. Não muita coisa além disso. Em especial, bolo.

Os pais das meninas eram, de longe, os que tinham mais condições financeiras ali, pois os dois lecionavam na escola da Missão (2). Além do dinheiro da escola, comentava-se — e a língua do povo era bem ferrenha nesses assuntos — que eles recebiam mais dinheiro nas tantas campanhas que realizavam por todo país e até no exterior, em defesa da causa indígena. Eram, com certeza, muito respeitados e admirados, mas sempre havia alguém para levantar alguma suspeita.

No entanto, quem olhasse de fora e não fosse parte da comunidade, jamais diria que eles estavam lucrando de alguma forma com a divulgação das dificuldades indígenas, fosse no país ou fora, pois como os outros, moravam em barracos de lona preta, cercado por outros barracos que tinham a mesma forma e eram construídos do mesmo material.

O espaço ocupado por eles era uma pequena área em que de um lado ficava a rodovia e do outro uma cerca colocada pelo fazendeiro, delimitando sua fazenda. A fazenda ocupava as terras indígenas. Na verdade, o território tradicional desse povo, que esperava um dia sair da estrada, abrangia essa e outras fazendas dos arredores.

A plantação de cana de açúcar se perdia no horizonte, por onde quer que a vista alcançasse. Apenas às margens do rio se via uma vegetação diferente. A mata ciliar, ainda intacta, era original: um corredor de mata atlântica ao longo do rio, com árvores verdes entrelaçadas a cipós e com vegetação rasteira e espessa, enfeitada por diferentes espécies de samambaias e flores.

A vida da adolescente era ali. Dali, ela pegava o ônibus e ia para a escola. Ali era o lugar onde se viravam para sobreviver. Mas, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, dali eles não saíam. Mesmo porque "ir para onde?". Era como os mais velhos sempre diziam: ali era o Tekoha (3), que eles definiam como o nosso lugar de ser o que somos, ainda que as lavouras dos brancos ocupassem as terras em um espaço a perder de vista, aquele era o lugar deles.


><>< 

Notas de rodapé

1. Guaxirê - dança indígena usada em dias de festa e comemorações, e que não tem cunho religioso

2. Missão - No Mato Grosso do Sul, existem várias missões religiosas que dão assistência aos povos indígenas, principalmente, em saúde e educação, com escolas, postos de saúde e até um hospital indígena. Hoje em dia, os indígenas estão se formando nas faculdades e assumindo o trabalho nessas áreas que antes eram ocupadas só por não-indígenas. 

3. Tekoha - Aldeia, território tradicional. Lugar onde se vive conforme a cultura e tradição do povo 

.   

***

(Antes de continuar, clique na estrelinha e deixe um comentário)

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora