28. Aty guasu, a grande assembleia (parte 1)

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Quando se deram conta do que realmente tinha acontecido com a pequena Amandy, e de que ela tinha sido raptada e estivera nas mãos de um dos terríveis irmãos lendários, Jasy Jaterê — pelo menos, era o que tudo indicava —, e de que a outra filha, Porasy, era prisioneira de dois deles, a família e amigos se mobilizaram. Os vizinhos que antes ajudaram a procurar Amandy foram chamados de volta, jovens e adultos foram acionados, e um recado foi enviado rapidamente ao capitão da aldeia Pirakuá.

O capitão, por sua vez, assim que soube da convocação de Itabira e Dhiacuí, foi atrás de pessoas específicas, de sua confiança, que também avisaram outros amigos e assim não demorou muito para que todos chegassem à casa de Itabira. O capitão estava acompanhado dos homens que o ajudavam na aplicação da ordem, disciplina e justiça da aldeia.

Os Hexakáry, caciques e xamãs da aldeia, também foram convocados. A convocação destes era, talvez, a mais necessária. Eles eram os detentores do conhecimento do mundo espiritual, aqueles que falavam e lidavam diretamente com os Donos, os que tinham posse das rezas sagradas, que viam além, e tinham conhecimento dos deuses e seus patamares de habitação. E eram eles, os que — pelo menos, era o que se esperava — mais sabiam sobre os sete monstros lendários.

Claro que as mulheres não ficariam de fora dos acontecimentos. Ainda mais sendo algo dessa proporção. Então, passando de casa em casa, convocando as parentas e amigas, animando as filhas, logo um grande número delas se movia pelos caminhos entre matas, capim colonião, atravessando os córregos e até o rio. Tornou-se necessário um local maior para a reunião e este foi logo definido: a escola da Aldeia.

Assim, em pouco mais de meia hora, talvez uns quarenta minutos no máximo, praticamente todos os moradores da Aldeia Pirakuá se encontravam reunidos no pátio da escola onde os pais de Porasy lecionavam. Todos falavam ao mesmo tempo e quase ninguém se entendia. A maioria nem sabia exatamente por que estava ali. Então, a pedido do líder político da aldeia, rapazes que eram vizinhos da escola trouxeram um microfone e uma caixa de som, instalaram e conectaram os aparelhos e passaram para o Capitão que, em seguida, usando os instrumentos e com voz alta e forte, pediu a atenção de todos. A ordem foi instaurada e se obteve um relativo silêncio.

— Agora é com vocês — ele falou para Itabira e Dhiacuí, encerrando sua parte na fala inicial. — Expliquem para todos o que está acontecendo.

Os pais de Porasy fizeram uma explanação rápida onde expuseram o que sabiam sobre os acontecimentos: a pequena Amandy havia desaparecido por um tempo — o que todos já sabiam de antemão, pois vários deles tinham ajudado na procura dela — e alegara ao voltar que estivera na caverna do Bicho Papão e da Cuca com o garotinho loiro que estudava na escola.

— O fato novo é que a desaparecida agora é Porasy — falou Itabira — e de acordo com os relatos de sua irmã mais velha, do primo Thomas e das amigas, que estavam com ela no momento do desaparecimento, ela foi capturada por Jasy Jaterê e Kurupi.

Ao fim dessa declaração tornou-se impossível Itabira continuar falando. Um momento de confusão e fúria se instaurou. Cada um falou alguma coisa. Alguns ficaram do lado da família e culpavam os monstros lendários, outros disseram que Porasy tinha a sua parte de culpa, por andar na aldeia sozinha, mas então foi explicado que ela não estava sozinha e todos entenderam, por fim, que havia testemunhas do rapto.

A partir daí não foi preciso muito mais para que todos os terríveis acontecimentos dos últimos tempos, em Pirakuá e região, fossem atribuídos aos sete monstros lendários, os deuses monstros filhos de Tau e Kerana.

Os frequentes raptos de meninas adolescentes, que na maioria das vezes nem tinham sido raptadas, foram atribuídos a Kurupi e também cada uma das violações sexuais. Cada menina que tinha perdido a virgindade fora do casamento e que não tinha uma explicação plausível para dar aos pais, ou tinha medo de contar a verdade, ou mesmo dar uma explicação adequada, ou das quais se envergonhavam, foram declaradas encantadas por Kurupi.

Todos os roubos e desaparecimentos de diferentes objetos foram atribuídos a Monhãi. As bicicletas, os celulares, as roupas e tênis; tudo que antes conferiam a gangs, usuários de drogas, ladrões; enfim, todos os roubos, foram relembrados e Monhãi recebeu a culpa. As pessoas se lembraram, como por mágica, de como os roubos aconteceram, contando sobre o momento, a maneira da ação do monstro serpente, a magia paralisante aplicada por ele.

Havia, ainda, as invasões e ultrajes dos cemitérios que apareceram com sepulturas violadas e abertas, com ossos retirados dos locais onde tinham sido enterrados. Esses fatos foram atribuídos a Huixon. Afinal, quem mais poderia ser? Quem desenterraria mortos e retiraria corpos de seu lugar de descanso eterno?

Várias crianças tinham se envolvido em desaparecimentos rápidos nos últimos tempos. E as mães e pais ali reunidos começaram a se lembrar desses fatos. Contaram de ocasiões em que seus filhos pequenos desapareceram e depois reapareceram sem explicarem com clareza onde tinham ido. Ninguém mais falava de traquinagens dos pequenos que saíram para brincar e se atrasaram para voltar, ou esqueceram das horas determinadas pelos pais. Todos os rápidos desaparecimentos de crianças foram atribuídos a Jasy Jaterê e às suas travessuras.

De repente alguém falou de perseguições realizadas a humanos, nas colinas, por manadas de animais desconhecidos. E todos os ataques foram atribuídos a Aô-Aô e ao seu bando de filhos selvagens. Muitas ofensivas desses animais desconhecidos terminaram com morte de pessoas. Todas elas foram conferidas aos rituais antropófagos das terríveis criaturas. Se fosse possível prestar atenção nas diferentes falas, se ouviria várias citações em que as pessoas perseguidas se abrigaram em Palmeiras Pindó, para se salvarem das feras.

Os sons noturnos e diurnos desconhecidos na aldeia, todos os grasnidos, foram conferidos a Mbôi Tuí, o segundo filho de Kerana, aquele que habitava os rios e pântanos, territórios dos quais era senhor. O monstro, protetor dos animais aquáticos e anfíbios, amava o orvalho e a umidade. Tinha um corpo de serpente, cabeça de papagaio, olhos malignos e uma enorme língua bifurcada. Mas sabia-se, que apesar de sua terrível aparência, dos sons ensurdecedores e hipnotizadores que emitia e eram ouvidos de longe, ele alimentava-se de flores e pequenos insetos. No entanto, histórias contadas naquela reunião em Pirakuá, naquele dia, diziam que a imprudência de caçadores, que ao buscarem sustento nos igarapés, lagoas e banhados, foi castigada com a morte por esse deus.

Comentaram ainda das ações de Teju Jaguá, o grande lagarto com sete cabeças de cachorro e cujo olhos fosforescentes, de acordo com a mitologia Guarani, lançavam chamas. A terrível criatura, senhor das cavernas e protetor das frutas, habitava as selvas, os ervais e as águas profundas. Durante as noites ele emitia aterradores latidos, sons ferozes que se ouvia de longe. Dizia-se dele que ele devorava quem caísse em suas garras.

Se o famigerado Teju Jaguá, já inspirava superstições antes, naquele momento, tudo se encaixava. Os tantos incêndios que apareceram e cresceram nas matas, formando muralhas incontroláveis, destruindo campos, plantações e casas, todos tinham sido provocados por ele, com seus terríveis olhos, que expeliam labaredas.

Muitos tinham histórias de locais onde tesouros estariam escondidos em buracos sob a terra. Localidades onde Monhãi, a terceira cria de Tau e Kerana, acumulava o produto de seus roubos e pilhagens, e onde nada, nem ninguém, se atrevia a estar. Senhor dos campos e do ar, Monhãi também possuía o corpo de uma cobra, mas com dois chifres retos como antenas em sua cabeça. Terrivelmente intimidador ele era conhecido por proteger ladrões e malfeitores. Por ser muito temido ninguém se animava a cruzar os montes, seu território de domínio.

(continua...) 


Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora