4. Sobre o monstro Ao Ao (Parte 2)

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Tupã'y aproveitou que tinha a atenção da neta e lhe fez um convite. Levantando-se do local onde estava sentado, na sombra da árvore em que mais gostava de estar, ele disse:

— Vem comigo, Porãsy. Quero lhe mostrar uma coisa.

— Ir aonde, ? — Ela já havia se levantado também.

— Venha comigo, é o que lhe peço. Vamos comigo até no mato perto do rio. Quero lhe mostrar a palmeira que repele Aô-Aô.

Atravessaram a rodovia, o avô sempre na frente. Passaram sob a cerca de arame farpado que fazia o limite da fazenda e foram até à pequena mata ciliar do rio.

Aquela era a mata nativa que ficava mais perto de onde se encontrava o acampamento do povo sem-território, que são eles, como Porãsy gostava de se referir ao seu povo. Aquele era o único resquício de mata que ainda havia na região: a mata que acompanhava o rio e que, só por isso, não fora destruída e reduzida a plantação de cana.

Entraram na trilha que a comunidade usava para chegar ao rio, em um lugar onde havia uma pequena lagoa, então o avô parou.

— Aqui. Venha por aqui — ele disse saindo do pequeno caminho e adentrando o mato, empurrando as ervas rasteiras e os galhos mais baixos das árvores.

Por um momento, Porãsy temeu se o avô estava bem, se tinha domínio de suas faculdades mentais. Chegou a desacreditar que a levava mesmo para lhe mostrar as tais palmeiras.

Ela estremeceu, mas o que mais o avô iria querer com ela ali? Então tentou valorizar o que ele falava e tentava lhe mostrar. Sentia que não podia desfazer de seu avô, afinal, estando bem ou não, ele acreditava mesmo em tudo aquilo, em todas as histórias, no perigo que seria se deparar com os filhos de Kerana e Tau e, mais que isso, acreditava que estava ensinando uma maneira da neta se defender.

E lá estavam elas: As palmeiras pindó! Na parte mais úmida da margem do rio, um lugar acessível apenas afundando os pés na umidade em meio às plantas e gramíneas.

— São aquelas, filha — ele disse, indicando as palmeiras com as mãos, sem, no entanto, se adentrar ao emaranhado de mato para ir até elas, o que Porãsy achou bastante ajuizado da parte dele. — Olhe bem o tronco e as folhas. Guarde a imagem na sua mente e os ensinamentos no coração.

Ela olhou com muita atenção. A palmeira era muito comum. Ela mesma a conhecia bem. Seu tronco era um dos poucos, em se tratando de palmeiras, que não tinha espinhos.

Ela, e todos os outros da etnia, gostavam muito dos coquinhos amarelos que se dependuravam em cachos na palmeira, na época de maturação. As folhas eram muito usadas para cobrir as casas indígenas que não fossem, como as deles, barracos de lona. Porãsy sabia também que o tronco podia ser usado na alimentação. Ou seja, uma planta que a tribo aproveitava de forma total, e, agora, mais essa função, segundo o avô: proteção contra Aô-Aô.

Então respondeu, mais numa tentativa de tranquilizar o avô de que realmente se apropriar do ensinamento.

— Tá bom, . Agora já sei quais são. Mas vamos voltar, que aqui deve ter sucuri, debaixo dessa vegetação.

Para a surpresa de Porãsy, o avô concordou sem relutância.

— Vamos voltar, sim, mas quero que me prometa uma coisa, filha. Quero que me prometa que vai guardar isso em sua mente: se um dia você se ver perseguida por Aô-Aô, tema mais a ele do que a possibilidade de haver sucuris nesses banhados.

Porãsy, mais uma vez, ficou quieta. Por instantes, não soube o que responder ao avô sem magoá-lo, sem deixá-lo triste. Para ela, a menor das possibilidades de, algum dia, se deparar com uma sucuri naquele lugar ou em qualquer outro era muito mais assustadora do que um encontro com qualquer um dos monstros lendários.

— Tá bom, . Eu prometo — respondeu, afinal. — Prometo que vou guardar. Mas será que alguém consegue subir nessas palmeiras?

— Consegue, sim. Sempre consegue. Se você precisar mesmo subir nelas, também vai conseguir. Mas posso, se você quiser, te ensinar algumas técnicas possíveis, em outras árvores mais acessíveis, é claro.

— Tá bom. Depois você me ensina.

Ao voltarem para a aldeia — que, como já dito, não era uma aldeia, mas só aquele pequeno número de barracos paupérrimos na beira da rodovia —, os dois permaneceram em silêncio.

Porãsy passava a mão nas folhas das plantas em volta, sentindo a textura de cada uma. Vez por outra, apanhava alguma e rasgava na mão, num sinal de apreensão.

Tupã'y, em seu silêncio, elevava o pensamento em um cântico de adoração e pedido de proteção para a neta aos deuses donos do mato e das palmeiras. Que eles abrissem os caminhos de salvação para Porãsy, se um dia ela necessitasse.

Yvy Rajy estava sentada em um banquinho ao lado do barraco. Parecia que tomava seu café. Ouvira a história do avô até o ponto em que ele saíra com a irmã em direção ao mato e entendera que ele a levaria para mostrar as tais palmeiras.

Então, assim que o avô passou e seguiu em direção ao seu barraco, onde a avó o esperava com o café, ela aguardou até ter certeza de que ele não estava mais ouvindo e, assim que Porãsy se sentou ao seu lado, falou:

— Você não é boba de acreditar nessas histórias, não, né?

Porãsy a olhou intrigada.

— Eu não sei — disse. — Por quê?

— Sabe por que eles inventam essas histórias? — continuou Yvy Rajy. — Para colocar medo na gente. Como você já tem treze anos e já está se tornando uma mocinha, eles contam essas histórias para que não saia por aí sozinha.

— Como assim? — Porãsy perguntou.

— Você vai ver. Depois, ele vai falar dos outros filhos da Kerana, vai falar que alguns deles enfeitiçam meninas que saem sozinhas... Você vai ver. Isso é só para colocar medo na gente, para que a gente não fique por aí. Na verdade, o medo é de que algum rapaz se aproxime. Rapaz de carne e osso mesmo. Pode ter certeza disso.

— Será?

— Claro que é. Preste atenção, que você vai ver.

— Vou prestar, sim.

Porãsy se levantou e entrou no barraco. Pensava no que a irmã falou. Bom, a irmã já tinha quinze anos, era mais velha, talvez soubesse mais que ela. Pensaria no que ela disse e consideraria as histórias do avô a partir desse novo ponto de vista. Era melhor isso do que pensar que ele era maluco ou que estivesse ficando caduco. 


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora