18. Thomas e Gwa'a Hovy: a arara azul (parte 1)

213 27 21
                                    



Acampamento Apyka'i

Thomas nadava sozinho no rio Dourado, que passava perto do acampamento de seu povo, na Aldeia tradicional Apyka'i. Gostava de sentir a água fria no corpo. De quando em quando, mergulhava e voltava à tona logo em seguida. Se renovava então ao calor do sol no rosto e corpo.

Era um novo acampamento de lona preta, refeito depois do incêndio que destruíra totalmente o que ficava às margens da rodovia. Os barracos agora ficavam juntos à mata ciliar, no território tradicional de seu povo, mas ainda dentro da fazenda dos não-indígenas.

Depois de um mergulho, ao voltar à tona, um barulho conhecido de pássaros chamou-lhe a atenção. Uma revoada de araras passou sobre sua cabeça, indo pousar nas árvores da margem. Elas procuraram as árvores mais altas, ou aquelas com frutos maduros com os quais se alimentavam, e pousaram, começando uma conversa e chamatório intenso.

Isso mesmo que você leu: chamatório. As araras são assim: elas andam em grupos. A primeira a encontrar um lugar legal, ou uma árvore com frutas, pousa e começa a "chamar" as outras, que, ao ouvirem, se unem às primeiras.

Thomas, ainda na água, ficou observando-as. Não que fosse raro araras por ali, mas parecia haver algo diferente naquele grupo barulhento. Ele mergulhou, mais uma vez, e depois se dirigiu à margem. Queria observar as aves mais de perto. Algo nelas o atraía.

Assim que se viu fora da água, o rapaz balançou o cabelo, numa tentativa frustrada de secá-lo. A água estava maravilhosa. Límpida, refletia os raios do sol, e a luminosidade balançava ao sabor do movimento da correnteza.

Então se sentou na margem, de onde dava para observar as águas do rio e as araras que, naquele local, estavam de certa formaocultas pelas folhas das árvores, ainda que a algazarra promovida por elas as denunciasse.

Thomas começou a observar também as plantas em volta. Nos últimos tempos passou a se interessar mais por elas, a valorizá-las mais. Não sabia a razão de seu interesse, mas queria desvendar o segredo de cada uma. Queria descobrir as suas propriedades naturais e mágicas.

Ele começou a se dar conta também, graças às histórias do avô, que cada planta tinha sua história e motivo de existência. Cada uma delas fora colocada pelos deuses e cabia aos mais próximos dos deuses receber a sabedoria e o conhecimento das propriedades de cada uma.

Então uma voz chiada, em um tom quase de reclamação ou reprimenda, vinda do alto das árvores, do lado onde se encontravam as araras, o surpreendeu:

— Tenho algo para dizer a você — disse a voz.

Thomas teve um sobressalto. Ele já ouvira arara reproduzir sons humanos. Araras eram comumente encontradas em casas indígenas. Suas penas eram muito valorizadas por serem usadas para artesanato, ainda que, nos tempos atuais, proibida, mas a voz que falava com ele não era meramente o som de uma ave tagarela, que reproduz o que ouve. Aquela estava falando com ele. Ou não era uma ave?

Recuperado do susto inicial, ergueu a vista, procurando por algo mais ou alguém que pudesse justificar o que ouvira de forma tão clara e nítida, mas só conseguiu ver uma arara azul, mais próxima que as outras, pousada em um galho mais baixo, encarando-o. A ave, para sua surpresa e ainda maior alarde, repetiu a frase com toda a clareza da primeira vez:

— Tenho um recado para você. Um recado direto de Tupã, o senhor das tempestades, dos raios e trovões.

Thomas não soube o que fazer. A arara falou com ele e, sobre isso, ele não tinha dúvidas. Mas aquilo o assustou. O pássaro se dirigia a ele de forma pessoal. Veio sabe-se lá de onde para estar o rapaz, e lhe trazia um recado. Isso, com certeza, não era normal.

, resolveu, então, se aproximar do pássaro, que o encarava, seguindo seus movimentos, tombando a cabeça, conforme o rapaz chegava mais perto. A ave era linda! As diferentes tonalidades das penas, em um arranjo magnífico de cores sobrepostas, o olhar atento, tudo prendeu a atenção de Thomas, fazendo-o admirá-la.

O adolescente, então, fez o que sempre se espera de alguém que se aproxima de uma ave mansa, criada como um animal doméstico: ofereceu o dorso da mão, como já vira inúmeras vezes na aldeia.

A arara, em um movimento simples e decidido, voou e pousou no braço de Thomas e como se fosse a coisa mais natural do mundo, lhe falou ao ouvido. Cochichou por vários minutos.

Em determinada altura dos tantos cochichos, as pupilas dos olhos do adolescente se abriram, bem como suas narinas e ouvidos. Seu corpo arrepiou-se, uma corrente elétrica suave eriçou seus pelos e cabelo por instantes.

Então seus olhos passaram a percorrer a mata em volta e as margens do rio. Ele ficou absorto na paisagem que lhe rodeava e nas palavras que lhe chegavam ao ouvido. Sua cabeça se movimentava inconscientemente como a da ave, para os lados. Ora se deitava para a esquerda e ora para a direita e abruptamente girava-a ao redor, correndo a mata em volta e as margens do rio.

A paisagem assumiu uma nitidez que gerou um zumbido alto dentro de sua cabeça.

As palavras da ave eram muito intrigantes e interessantes, tal era a atenção e assombro do rapaz. Logo, com a ave no ombro, ele se dirigiu até o outro lado do banhado próximo e ali seguiram por um estreito caminho entre as árvores. O segredo ansiado por Thomas estava revelado. O véu do espírito se abriu diante dele. 


><><>

(continua)


Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora