36- Shakespeare

175 13 0
                                    

Sexta-feira chegou, dia quinze de julho de 2016, depois de uma noite cheia de muita coisa. Eu estava exausta enquanto Alice se levantava pra ir no banheiro e Sophia parava em pé perto de mim, me cutucando e perguntando baixo, na tentativa de ser, ou fingir ser, discreta:

– Transaram?

Tentei me fazer de idiota pra não responder, fingi não ter entendido a pergunta, mas ela estava insistente, então fiz algum gesto, não sei se com a cabeça ou com as mãos, mas acho que afirmei. Não me lembro exatamente, mas creio ter feito porque carrego um sentimento de "não deveria ter afirmado", ou algo assim, então deduzo realmente ter feito, infelizmente.

Por alguma razão que não sei qual, fomos apenas eu e Sophia no mercado, mas não tocamos no assunto, ela nem perguntou nada, o que pra mim era ótimo já que não queria falar a respeito, mas como amiga talvez fosse estranho, ou não, sei lá, talvez eu só esperasse mais dela. Comprei um kitkat tradicional, porque... enfim... queria levar algo de presente pra Alice, fiz isso meses atrás quando transamos a primeira vez, fiz de novo naquele dia, era como levar flores pra mulher que eu amava, mas como não gosto de flores, levo chocolate.

Esperei um momento em que Sophia nos deixou a sós, lhe entreguei o doce e ela sorriu, pareceu gostar e isso já me era o suficiente, porque existem pequenos detalhes que valem mais do que mil... seu sorriso valia mais do que tudo pra mim e era apenas ele que queria ver em seu rosto, ainda mais depois de tantas lágrimas.

Não houve nada em especial naquele dia, estávamos em trio, tivemos nosso último ensaio a noite e assim voltamos pras nossas casas. Meu coração estava partido, minha mente cheia de lembranças e a todo momento vinha "eu não posso me apaixonar por você"... "não consigo não deixar você entrar"... é muito difícil não criar esperanças quando as mesmas surgem de forma involuntária... ainda mais depois dessas frases.

Nosso sábado chegou, dia da estreia da nossa peça de segundo período, teríamos apenas dois dias e assim entraríamos de férias, o que me gerava um misto de sentimentos, por um lado ficava feliz pela ideia do descanso, da distância e etc, mas por outro era justamente a distância que me machucava... resumindo, eu sentia dor por qualquer coisa, era bizarro e muito chato. – Riu.

Houve um momento, creio que no intervalo de uma cena minha para outra, em que estava me trocando e Alice se aproximou pra me ajudar, veio ajeitar meu cabelo, parando de frente a mim a uma distância mínima, o que é muito comum entre nós do teatro, que acabamos criando o costume pela aproximação, ou pela nudez do outro, porque muitas das vezes não teremos nem tempo e nem lugar pra fazer as coisas, então quando um ajuda o outro, tudo flui melhor.

Eu não conseguia olhá-la, já havia criado o hábito de não fazê-lo para não chamar a atenção das pessoas, pensando sempre em protegê-la, principalmente por aqueles últimos meses, onde todos já sabiam da minha sexualidade e eu pouco me importava quanto a isso, a maioria era homossexual, então me sentia em casa quanto a mim, mas não quanto a perceberem que ela havia traído seu namorado comigo, ainda mais porque meus colegas estavam se tornando colegas do Diogo... não todos, mas alguns poucos sim... Sophia era uma, e com ela, Léo.

Nós estreamos, foi tenso, louco e maravilhoso ao mesmo tempo, recebemos vários elogios, meu pai, meus irmãos, minha mãe, padrasto e meu tio/chefe foram me prestigiar, o que foi muito bom pra ver se meu tio começava a levar mais a sério todo o esforço que eu estava fazendo pra estudar e me formar no que realmente queria, ao invés de passar o resto da vida na empresa dele, porque, da forma que falava, mencionando planos de abrir filiais em outros lugares me colocando como responsável, não parecia entender quais eram meus reais objetivos de vida... enfim, eu estava demitida, aquele seria meu último mês, então o que viesse seria lucro.

Num dos dois dias Alice teve a brilhante ideia de colocar Diogo dentro do camarim enquanto nós nos trocávamos, o que foi muito desagradável, ele era músico, não ator como nós, me senti mal e saí pra trocar de roupa em outro lugar, não iria questionar ou arrumar problema naquela altura do campeonato.

Terminamos nossa breve temporada de dois dias, concluímos nosso segundo período, fomos eu, Léo e Cíntia pra um bar, Sophia não quis ir, enrolou até dizer chega, mas com eles eu fui enquanto tentava resgatar alguma possibilidade com Diana por Whatsapp sem muito sucesso, até porque achei que havíamos esfriado durante aquela semana e me arrependi muito de não tê-la conseguido encontrar.

Lá estávamos, sendo aquele meu segundo contato mais direto com Cíntia, que havia participado de nossa peça por um convite de última hora, onde descobri ser ela, não só muito amiga de Gustavo, mas também uma de suas colegas de turma em outro horário e período.

Nós ríamos já bêbados, cheguei a oferecer cinquenta reais à Léo que chorava miséria e foi realmente de coração, porque ele dizia estar sem dinheiro nem pra comer, quando surgiram Alice, Diogo e um amigo de ambos e obviamente foram convidados a sentar.

Ali ficamos, mas houve uma situação em mesa que lembro de não ter gostado. O amigo deles, que se chamava Manoel, fez alguma brincadeira sobre Alice sempre sair financeiramente na aba de alguém e nunca com dinheiro próprio, Diogo riu e pareceu concordar enquanto ela permanecia quieta.

Não vi interação entre eles, nem próximos estavam muito, apenas sentados lado a lado, de qualquer forma aquela era uma situação desagradável, ao menos pra mim, já que estava na mesma mesa que em ambos estavam sentados à minha frente.

Uma moça vendendo docinhos surgiu, muito simpática e fazendo várias piadas.

– Ah! Adoro esses docinhos. – Disse Alice.

– Compra doce pra Alice. – Disse Manoel pra Diogo em zoação.

– Pow... to com pouco dinheiro. – Disse ele sorrindo com aquele jeito meio chapado de sempre que possuía... provavelmente devia estar.

Meu sangue ia fervendo com toda aquela brincadeira da moça que queria vender seus docinhos, do amigo que fazia aquelas piadas sem noção, do Diogo que não parecia se posicionar como eu achava que deveria, dos meus amigos que também queriam doce e tentavam negociar.

Chegaram a um combinado pra comprar os doces, mas as contas não estavam batendo, o cartão do Diogo não estava passando.

– Eu pago. – Falei tentando esconder minha irritação, fazendo o que acreditava ser papel daquele que tinha quem eu queria e que, ao menos ali, não parecia estar valorizando, não por questões financeiras, mas pela brincadeira feita diante de todos sobre ela sair na aba do próprio namorado.

– Assim que eu gosto, pessoa de decisão. – Disse alguém me zoando, acho que foi a menina do doce, mas nem reparei direito quem foi.

Aquela foi a primeira vez que dormi na casa de Cíntia, pessoa que mal conhecia, levada de carona por Diogo, me sentindo extremamente constrangida por toda aquela situação, estava bêbada e tudo mais que se possa imaginar em quesitos emocionais, porque a vida é assim, quando ela não te fode na entrada, te fode na saída.

– Ótimo sexo pra você. – Desejou Manoel quando estávamos saindo do carro onde Alice também estava. – Divirtam-se.

– Pode deixar. – Acho que respondi constrangida.

"Quando não te fode na entrada, te fode na saída"... nem lembro se Alice fez alguma piada a respeito, o que na verdade seria de seu normal fazer, mas acho que não fez, creio que apenas tenha continuado com a mesma cara que estava antes, meio séria, talvez cansada... não sei.

Subimos, Cíntia colocou um colchão de solteiro ao pé de sua cama, também de solteiro, o forrou, me deu travesseiro e cobertor, deitamos cada uma em seu lugar, uma longe da outra, embora no mesmo quarto estivéssemos, e assim, por volta das quatro e pouca da madrugada, dormi... dormi "feliz", como sempre... bem vinda férias... que comece a choradeira, as brigas sem fim e as depressões.


Obs: Primeira Parte encerrada... 2016 foi realmente um longo ano rs... comente e curta. Bju ;)

LGBT - Aos Meus Olhos - 2016 Parte 1Where stories live. Discover now