28. O desaparecimento de Amandy (parte 1)

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Os sons e agitação vindos da cozinha despertaram Porãsy. Ela olhou na cama em frente e percebeu que a irmã mais velha já havia se levantado: a cama estava arrumada e com uma colcha de estampa florida estendida sobre ela. Amandy também não estava mais aos seus pés. O sol parecia estar alto no céu, indicando ser mais de oito horas, talvez perto das nove.

Porãsy se levantou, arrumou a cama e foi para o banheiro. No caminho, não quis olhar e nem cumprimentar os dois grupos de pessoas que percebeu na sua casa: um na cozinha e outro na sala.

No entanto, assim que abriu a porta do banheiro se deu conta, ao olhar de relance para sala, de quem estava ali. Na sala estava o avô Marçal Tupã'y com os pais e umas outras pessoas. Era isso! Ela esqueceu que o avô havia chegado. Sim, o primo e o pai tinham saído no dia anterior, para buscar o avô. Nossa! Como ela havia se esquecido disso? Sentiu-se envergonhada.

Escovou os dentes, lavou o rosto e foi para a cozinha.

— Apareceu a dorminhoca! — Yvy parecia muito satisfeita ao cumprimentá-la.

— E aí, prima? — o coração de Porãsy se acelerou com o cumprimento de Thomas.

— Oi, Thomas — havia quase um tremor em sua voz.

Como não havia onde se sentar, Porãsy pegou seu café e foi para sala.

— A bênção, vovô — cumprimentou-o sorrindo. A saudade que sentia dele morria ali. Estavam juntos de novo.

— Deus te abençoe, minha filha — ele respondeu, alegre de ver a neta. Como ela estava grande e forte! O avô sentia a força que emanava da neta e ficou satisfeito.

Porãsy se sentou em uma parte do sofá que estava desocupada e começou a comer. O grupo da cozinha conversava animadamente. Decidiram em conjunto que sairiam para passear pelos arredores.

— Você vem, Porãsy? — a irmã a chamou.

— Não vou agora não, Yvy. Vou ficar um pouco com o vovô.

— Tá bom, mas se você resolver, sabe onde estaremos, certo?

— Certo.

A mãe percebeu que Porãsy já estava mais calma. Ela era muito diferente das outras irmãs. Na verdade, sempre fora, mas nos últimos tempos, em alguns momentos, a mãe tinha dificuldade de reconhecer a filha. Estava muito mudada. Antes, era meiga, calma, cativante, mas, fazia um tempo vivia nervosa, agia com impulsividade, se irritava facilmente. É... tempos difíceis virão por aí, Dhiacuí pensou, desejando que a filha não fosse dominada pelo seu lado animal. Lado de fera indomável e que a fazia agir precipitada e por impulso. Mas ela reconhecia que ela própria era assim e suspirou, desanimada.

Como o avô e o pai estavam com visitas, a menina resolveu não atrapalhar. Assim que terminou de tomar café, disse para a mãe:

— Vou para o quarto, mãe.

Ia deixando a xícara na pia, junto às outras louças sujas, quando a mãe se interpôs.

— Primeiro lava essas louças sujas. Todos devem ajudar. Temos muitas visitas.

— Ah, mãe! Eu? Eu tenho que lavar a louça de todo mundo?

A mãe e o pai a olharam juntos e lhe lançaram um olhar fulminante de reprimenda. Sim! Ela lavaria a louça! Fazer o quê, né?

Enquanto ainda realizava o trabalho que lhe fora designado, o grupo que estava na sala se dirigiu para fora. Depois, quando Porãsy já estava no quarto, eles começaram a tomar tereré e conversar sobre os estranhos acontecimentos dos últimos tempos, em diferentes aldeias. Outras pessoas chegaram, aumentando a roda de tereré e a narração de histórias.

De repente, a conversa se virou para os fenômenos ocorridos nos últimos sete anos, na aldeia de Pirakuá, arredores e em outras aldeias, e de como eles estavam alcançando o seu apogeu.

— São tantas meninas raptadas. E eles jogaram com elas, na maioria das vezes. Estavam, com certeza, procurando algo... ou alguém! Algumas delas desapareceram, outras enlouqueceram por um tempo... E tem aquelas que... se mataram! Esses abusos geram órfãos ou abandonados — alguém disse com tristeza na voz.

Porãsy sabia o que eles queriam dizer com "jogaram com elas". Eles se referiam a estupros, abusos sexuais. Essa parte da conversa a assustou e ela se remexeu na cama onde estava. Não tinha como negar que havia aumentado muito as histórias e conversas sobre fatos como esses, nos últimos tempos. Mais do que queria ter conhecimento, porque esse assunto não era algo sobre o que gostava de ouvir. Mas até Porãsy tinha certeza de que esses atos estavam ocorrendo com mais frequência.

— Tem havido muitos roubos também. As casas têm sido violadas com muita frequência. As pessoas têm perdido muita coisa com esses assaltos e nunca se vê quem é. Não se sabe quem são as pessoas. Não existem pistas dos estranhos.

De seu quarto não tinha como não ouvir. Porãsy rolava procurando uma posição confortável, mas as vozes chegavam claras para ela.

— Tenho ouvido várias reclamações, nesse sentido — outra pessoa comentou.

Sumiço de roupas, sapatos, celulares, TV's, bicicletas, etc. Quanta coisa declarada como desaparecida nos últimos tempos! Alguns consideravam que seriam jovens usuários de bebida alcóolica e drogas que roubavam para manter o vício, mas sempre tinha aqueles, como os que se encontravam do lado de fora da casa, que acusavam Monhãi por esses roubos.

Porãsy cobriu a cabeça com o travesseiro e resolveu dormir. Precisava relaxar um pouco, mas ficou pensando em Monhãi, o terceiro filho de Kerana. Aquele que possuía o corpo de uma enorme serpente e dois chifres retos e iridescentes, que funcionavam como antenas. Segundo as histórias, conforme ele se movia, seus chifres refletiam as diferentes cores do arco-íris, seu domínio e posse eram os campos: ele era o senhor dos campos.

Porãsy repassou as características do monstro várias vezes em sua mente. Ela precisava se lembrar de tudo que pudesse sobre ele, pois logo estaria com aquele ser e quanto mais soubesse sobre ele, mais chances teria de obter vitória em sua empreitada.

Lembrou-se de o avô dizer a ela:

— Se alguém tenta escapar dele subindo em uma árvore, são tempo e energia perdidos, pois o monstro-deus sobe em árvores com grande facilidade. Se alimenta geralmente de aves que domina com seu poder hipnótico que emerge das antenas. Por isso mesmo ele também é conhecido como senhor do ar. Ardiloso, tem grande habilidade em roubos, pelos quais nunca sofre consequências, já que é muito esperto.

Embalada pelos sons, Porãsy adormeceu. Lá fora, o tereré e a conversa continuaram por muito tempo, mas ela não ouvia mais. No entanto, no mundo dos sonhos, os monstros eram ainda mais reais. 


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(continua)  


Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora