8. Pirakuá: o buraco do peixe (parte 1)

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Itabira dirigia o carro a uma velocidade tranquila para aquela rodovia. O dia amanhecera frio, com um vento intenso e gelado, o que, de certa forma, não era normal para a época, na região. Estavam no início de agosto e havia passado cerca de dois meses desde o incêndio e a mudança do acampamento da comunidade para dentro do território tradicional indígena em Apyka'i.

Porãsy não gostava do mês de agosto. Agosto era um mês seco, com muita poeira, vento, falta de chuva e problemas nas vias respiratórias. E ali estava ela, passando mal no banco de trás do carro, sentada com suas irmãs, Amandy no meio e Yvy Rajy no outro canto.

A garganta e faringe dela doíam muito e arranhavam. De quando em quando, ela tinha um acesso de tosse. Nesses momentos o pai insistia que ela tomasse mais um pouco do chá que estava na garrafa térmica aos pés da menina.

A família toda era dada a chás, garrafadas, unguentos e outros preparados à base de ervas. Era só alguém espirrar e lá vinha o pai, ou mãe, ou mesmo avó, tios e tias, com algum chá. Porãsy sempre se lembrava do Chris da série da TV "Todo mundo odeia o Chris", nesses momentos dos chás. Só que, no caso do Chris, era xarope que sua mãe o fazia tomar.

No sudoeste do estado de Mato Grosso do Sul, bem na divisa com o Paraguai, tem um município que se chama Bela Vista. Banhado pelo rio Apa, em um local plano com temperaturas amenas durante quase todo o ano, a cidadezinha tem só 25 mil habitantes e, o que Porãsy considerava uma tristeza e irritação ainda maior do que a de sua garganta infeccionada, era para lá que estavam se dirigindo. Morariam por cerca de cinco meses na aldeia Pirakwá, que ficava no município. A professora indígena do local dera à luz um bebê e os pais aceitaram o convite para darem aulas ali, enquanto ela estivesse de licença maternidade.

Porãsy estava irritada. Ela se questionava o que tinha a ver com isso, de os pais se mudarem para uma outra aldeia. A adolescente se perguntava por que ela tinha que estar inserida nisso.

— Mãe, por que eu tenho de ir? Me diz — já perguntara várias vezes. — Eu não quero ir para Pirakwá. Não pedi isso; não foi a minha decisão.

— Filha, já conversamos sobre isso. — O pai era sempre tranquilo. — Além de ser só por um tempo, você está indo porque sua família está indo.

— Aff! — Ela estava mesmo indignada. — Por que as coisas têm que ser assim com a gente? Os pais tomam essas decisões loucas, de uma hora para outra, e nós, filhos, é que arcamos com as consequências. A última coisa que eu queria, nesse instante, era ira para aquela aldeia.

— Para com isso, filha! — Mesmo sendo o rei da paciência, o pai estava começando a perder a sua, diante de tanta reclamação da filha.

— Mas, pai... — ela ainda insistiu — olha em que mês do ano nós estamos. Vocês não estão pensando em nós. Vamos ter que entrar em uma escola nova, com colegas e professores desconhecidos, nessa época do ano — choramingou.

— Vão ser só cinco meses, filha — seus pais lhe disseram uma centena de vezes, o mesmo número das vezes que ela emburrou ou ficou exasperada com a história deles. — É só porque eles não encontraram outros professores para ficar no lugar. Será só durante a licença-maternidade da professora. Depois, a gente volta para nosso canto, para nossos barracos, e você para sua escola. Agora vamos parar com essa manha. Não pense que não sentiremos falta da família e que estamos satisfeitos, mas é nosso dever. Não tem mais discussão!

Só cinco meses, eles diziam. Só cinco! Para Porãsy, isso era uma eternidade.

Porãsy era muito parecida com sua mãe em todos os aspectos. Às vezes, ela até se assustava ao se ver no espelho. Parecia estar vendo uma réplica da mãe, só que mais nova. Também no temperamento elas eram parecidas. Ambas eram determinadas e desconfiadas. Muitas vezes Porãsy chegava a ter dó de seu pai em aguentá-las. Já Yvy Rajy saiu parecida com o pai: paciente, carinhosa, suave. Como ele, ela não era de reclamar, falava só com voz delicada e doce. A pequena Amandy era a mistura de todos.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora