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Sei o quanto você e papai se sacrificaram, e..

- Espere. - Marichelo bateu o dedo sobre a mesa, com olhar sério mas bondoso. - Talvez depois de todos esses anos, meu inglês esteja ruim. Não entendo a palavra "sacrifício" quando se refere aos meus filhos. Nunca precisei me sacrificar por você.

- Quis dizer que você e papai fizeram tudo para me apoiar em todos os sentidos quando desejei dançar. Por favor, mamãe! - Impediu que Marichelo a interrompesse. - Deixe-me terminar. Isso não me sai da cabeça. Todas as aulas, todos aqueles anos... Os trajes de dança, as sapatilhas, as viagens. Deixaram-me ir para Nova York quando, eu sei, papai desejava que fosse cursar uma faculdade. Mas permitiram que eu fizesse o que queria. E eu sempre quis que sentissem orgulho de mim.

- É claro que temos orgulho de você! Que bobagem colocou na cabeça?

- Eu sei que vocês têm orgulho. Pude sentir isso ao longo dos anos. Quando dançava e vocês estavam assistindo, ainda que não pudesse vê-los sob a luz dos refletores, podia sentir a presença de vocês. E agora... joguei tudo fora!

- Não. Apenas colocou de lado. Acha que só sentimos orgulho de você quando está dançando? Só damos valor para a artista e seu talento?

Anny estava com os olhos marejados de lágrimas.

- Temi que ficassem desapontados quando desisti de dançar para ser professora.

- Dentre todos os meus filhos - disse Marichelo, sacudindo a cabeça com ênfase - Você é a que está sempre olhando nos cantos para ver se descobre um grão de poeira. E mesmo quando não há, precisa varrer. Pare de procurar problemas e responda: quer ser uma boa professora?

- Sim, muito!

- Então será, e ficaremos orgulhosos. E entre a bailarina e a professora ficamos felizes com as duas. Sentimo-nos envaidecidos porque sabe o que quer e como conseguir. É uma linda jovem, de bom coração e mente forte. Só vai me desapontar se duvidar disso, Anny.

- Não duvido. - Suspirou e enxugou as lágrimas. - Não sei o que acontece comigo. Nos últimos tempos ando muito chorosa.

- Está mudando de vida. É uma época de emoções. E tem muito tempo livre para pensar e se preocupar. Por que não sai com suas amigas? Ainda tem tantas na cidade... Por que não vai a uma festa hoje à noite com um belo rapaz, em vez de ficar em casa, na véspera do Ano-Novo, assando tender com sua mãe?

- Gosto de ajudar você na cozinha.

- Anny...

- Está bem. - Levantou-se para terminar a massa, porque precisava ocupar as mãos. - Pensei em ir a uma festa hoje, mas a maioria de minhas amigas já se casaram ou estão namorando. Não sei com quem sair, nem estou à procura de companhia.

- E por que não, Anny?

- Porque já conheci quem me interessa.

- Oh! E quem é?

- Alfonso Herrera.

Marichelo tomou um gole de chá para ganhar tempo.

- Entendo.
- Sinto uma grande atração por ele.
- Alfonso é mesmo um homem muito atraente. - Os olhos de Marichelo brilharam. - Sim, sem dúvida é lindo e eu gosto muito dele.
Um pensamento cruzou a mente de Anny.
- Mãe, não o mandou me procurar de propósito, mandou?
- Não, mas teria feito se tivesse pensado nisso. Então, por que não sai com Alfonso Herrera na véspera do Ano-Novo?
- Alfonso tem medo de mim. - Anny riu ao ver o olhar espantado da mãe. - Bem, sente-se desconfortável, quero dizer. Acho que fui muito agressiva.
- Você? - A mãe fingiu não acreditar. - Minha filha tão tímida?!
Anny soltou um risada e deixou a massa de lado.
- Está certo. Confesso que tentei seduzi-lo de qualquer modo. Mas ao esbarrarmos um no outro na loja de brinquedos, quando ele comprava um caminhão para Arthur, começamos a flertar, e pensei que estivéssemos na mesma sintonia.
- Na loja - repetiu Marichelo em voz baixa, como se sonhasse.

Ela e Pedro haviam se visto pela primeira vez ali, onde ele comprava uma boneca para a filha Angel, do primeiro casamento. Destino, voltou a pensar. Ninguém escapava dele.

- Então - prosseguiu Anny -, quando percebi que o brinquedo era para o filho dele, concluí que era casado, é claro. E fiquei aborrecida por ter correspondido ao flerte.

Marichelo sorriu, deliciada com o rumo da história.

- É claro.
- Em seguida descobri que era viúvo e vi o caminho desimpedido. Ele também está interessado. - Anny voltou a dar um soco na massa. - Só que teima em negar.
- É um solitário.

Anny ergueu o olhar e sua expressão suavizou-se.
- Sim, sei disso. Mas insiste em não se aproximar. Talvez faça isso com todos, menos com Arthur.

- Comigo ele é muito comunicativo e amigável. Entretanto, quando o convidei para vir aqui em casa amanhã, deu uma desculpa. - Marichelo encarou a filha, enquanto levantava-se de modo decidido, para voltar ao trabalho. - Deve fazê-lo mudar de opinião. Se fosse você, iria à casa dos Herrera mais tarde, levaria uma travessa de lentilhas para dar sorte no ano novo, e tentaria convencê-lo a vir nos visitar.
- É um tanto presunçoso aparecer na casa de um homem na passagem do ano. - Anny sorriu. - Mas é um plano perfeito. Obrigada, mamãe.
- Ótimo - retrucou Marichelo, experimentando o molho da panela. - Então eu e seu pai teremos nossa festinha particular de réveillon.






Obg pelos comentários e votos meninas!!!

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