Kam aparece com uma expressão emburrada e o iPad na mão.
— Vai pra baia quatro e começa a separar os pacotes. Estamos atrasados pacas.
Resisto ao impulso de bater continência. Mas concordo com ele — a situação não tem a menor graça. Estou me sentindo péssima.
A manhã se arrasta. É como se eu estivesse coberta de piche e cada movimento exigisse um esforço imenso. Devo ter pegado uma gripe. Estou exausta, exatamente como Hope avisou que ia acontecer, por causa dos dois empregos, a faculdade, o estresse com Harvard. Peguei pesado demais este semestre e agora estou pagando por isso.
Quando o turno acaba, quase não tenho forças para entrar no carro e sair do estacionamento. Chego em casa, mas, no instante em que entro na cozinha, sou tomada por outra onda de náuseas. Tapo a boca com a mão e corro para o banheiro.
— Qual o problema de vocês? — resmunga Ray, de pé, na porta aberta. Está com uma das suas regatas brancas manchadas para fora da calça de moletom cinza. Numa das mãos, segura uma cerveja.
Você. Você é o nosso problema.
Em seguida, percebo o que ele acabou de dizer.
— Como assim “vocês”? Vovó tá doente?
— Foi o que ela disse. Não terminou de fazer meu café da manhã. Se sentiu mal e teve que ir deitar. — Ele aponta o quarto da minha avó com a cabeça.
Fico de pé e me arrasto até o quarto dela.
— Vó, você tá doente? — pergunto.
O quarto está escuro, e ela está deitada na cama com uma máscara de dormir cobrindo os olhos.
— Tô. Acho que peguei uma gripe.
— Merda. Eu também.
— Ouvi você vomitar hoje de manhã.
— Desculpa.
Ela dá um tapinha na cama.
— Vem aqui e deita um pouco comigo, meu bem. Você ainda vai trabalhar hoje?
Faço que não com a cabeça, embora ela não possa me ver.
— Tô de folga até amanhã de manhã. Hoje não vou pra boate.
— Que bom. Você trabalha muito.
Me aninho no espaço que ela abriu para mim. Quando era criança, costumava dormir com a minha avó. Eu ficava com medo, e ela me encontrava toda enrolada debaixo das minhas cobertas, chorando no travesseiro. Mamãe estava por aí, com Ray ou algum dos outros homens que teve antes dele. Então minha avó me carregava para o quarto dela e me dizia que os monstros não iam me pegar se a gente ficasse abraçada.
Encontro a mão da minha avó e entrelaço os dedos nos dela.
— É só por mais alguns meses.
— Não se mate antes disso.
— Pode deixar.
Ela aperta minha mão.
— Desculpa pelo que eu falei.
— O que foi mesmo?
— Que você é metida. Que sua mãe pensou em abortar você. Ainda bem que ela não fez isso. Te amo, minha lindinha.
Lágrimas brotam nos meus olhos.
— Também te amo.
— Desculpa não ter sido uma mãe melhor pra você.
— Você se saiu bem — protesto. — Tô indo pra Harvard, lembra?
— É. Harvard. — A palavra vem imbuída de incredulidade e espanto.
— E eu? — Ray reclama da porta. — Você não terminou de fazer o café da manhã e já tá na hora do almoço, porra.
Sinto vovó tremer de leve ao meu lado e não sei se é de raiva ou por causa da doença. Eu me forço a sentar.
— Fica aqui, vó. Eu dou um jeito.
Ela desvia o olhar da porta e de Ray, mas de mim também. Acho que, lá no fundo, eu queria que ela mandasse Ray à merda.
Meu padrasto grunhe quando passo por ele a caminho da cozinha.
— O que você quer? — Abro a geladeira e a encontro surpreendentemente vazia. Será que faz muito tempo que minha vó tem se sentido mal e eu não notei?
— Sanduíche de queijo grelhado e sopa de tomate — responde ele. Em seguida, puxa uma cadeira e senta.
— Vai lá assistir televisão — digo, pegando um bloco de queijo cheddar, manteiga e leite.
— Não… Gosto de ver sua bunda trabalhando na cozinha. É tão bom quanto qualquer programa de TV. — Ele cruza os braços atrás da cabeça e se recosta na cadeira. Sinto seus olhos redondos acompanhando todos os meus movimentos arrastados.
O pão parece surpreendentemente convidativo, e tiro um pedacinho, mastigando devagar, para ver se ele fica na barriga. Como meu estômago não o rejeita, como outro pedacinho. Depois de um tempo, a tontura e a náusea diminuem.
A frigideira de ferro fundido já está no fogão, e o sanduíche está pronto para tostar a qualquer momento.
— Não esquece a sopa, mocinha.
Esfrego a lateral do meu pescoço com o dedo do meio antes de cruzar a cozinha para pegar uma lata de sopa no armário.
— Por que você é tão babaca? — pergunto, com ar de descontração, enquanto procuro um abridor de latas na gaveta. — É porque você é um saco inútil de merda que não aguenta se olhar no espelho? Ou é porque a única mulher que consegue convencer a levar pra cama hoje em dia recebe aposentaria?”
— Tem um monte de mulher atrás de mim, não precisa se preocupar. Um dia você vai cair desse pedestal e vir se arrastando também. — Ele estala os lábios com um barulho nojento. — E talvez eu aceite te comer, ou talvez te deixe fazer um boquete quando me der vontade.
Prefiro me matar.
Não, mataria ele primeiro.
Ao abrir a lata, fantasio com a tampa afiada saindo, voando pela cozinha e cortando fora o pau de Ray. Então o cheiro ácido do tomate chega ao meu nariz, e uma ânsia de vômito irrefreável me atinge.
Largo tudo e corro para o banheiro, onde vomito pela terceira vez hoje.
YOU ARE READING
A Conquista | BETRIZ
FanfictionDe todos os jogadores do time de Hóquei da universidade de Briar, Beto Sobral se destaca por ser o mais sensato, gentil e amável. Diferente de seus amigos mulherengos, ele sonha mesmo é com uma vida tranquila: esposa, filhos e, quem sabe um dia, abr...
͏ ͏ ͏ ͏ ͏ ͏ ͏ ͏ ͏20. beatriz ⋆✴︎˚。⋆
Start from the beginning
