14b. Sérgio e a Arara Vermelha

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— Sérgio tá bravo com Arara! Mas Arara não fez nada com Sérgio! Arara só quer conversar com Sérgio. — O som da arara era muito alto. Sérgio se admirou de ninguém aparecer no quarto para ver o que estava acontecendo. O que ele considerava que fosse o melhor. Pelo menos poderia ajudá-lo a dar um jeito na ave.

Por fim o garoto não aguentou mais. Caiu sobre a cama de puro cansaço. Ficou olhando a arara ficar dando voltas até resolver pousar na escrivaninha. Sérgio a acompanhou com o olhar. Ela voou de novo. Um voo bem curto. Pousou na cama, aos pés do adolescente. Foi caminhando devagar e cautelosa até perto de sua perna, depois braço e enfim pulou no seu peito.

Sérgio levou um susto enorme, mas não se moveu. Estava muito cansado e queria ver no que ia dar aquela situação ali.

— Sérgio cansado! — a arara falou subindo e descendo sobre o seu peito, conforme a respiração dele. — Sérgio muito cansado! Sérgio muito mole! Se cansa fácil!

— Ah, vai tomar banho, sua arara nojenta! O que você quer afinal?

Só então o menino percebeu que estava conversando com a arara. Não era só um som repetitivo que a ave fazia. Ela estava falando com ele, e sobre ele. Devo estar muito esgotado, ou sei lá o que. Talvez sonhando, ou louco. Ele pensou. Não, louco não. Dormindo talvez, disse para si mesmo.

A arara voltou a andar sobre seu peito.

— Sérgio precisa parar de ter raiva de índio — ela falou. — Sérgio precisa parar de perseguir menina na escola.

Ãh! Era isso mesmo que ele estava ouvindo? A arara estava lhe dizendo para deixar de ter raiva da menina da escola? Sim. Era isso o que ele ouvira. Mas como?

— Arara sabe que Sérgio xingou a menina. Arara sabe que Sérgio tem raiva de índio. Mas Sérgio não pode ter raiva de índio. Sérgio é um Tubyb-abá: um descendente dos primeiros pais.

O adolescente se sentou na cama fazendo a arara escorrer para trás e bater as asas, pulando para a cama:

— O que você está falando, Arara? E desde quando arara fala? Quer dizer, arara repete os sons humanos. Mas desde quando arara conversa?

— Você não sabe de nada mesmo, né, falso Karaí? Nós, as araras, os papagaios, periquitos e todas as outras aves, falamos desde o princípio dos tempos. Então você não sabe que foi uma de nós que falou com o Nosso Irmão Mais Velho que a mãe deles tinha sido comida pela Avó das Onças? Os Jagwaretê ypy, você entende?

— Entendo nada. Aliás eu não estou entendendo nada de nada. Não sei nem porque estou conversando com você. Primeiro: pássaro não "conversa"; segundo: isso deve ser um sonho e já, já vou acordar. - Tentou fechar os olhos para escapar daquele "sonho" vivo.

A arara pulou na perna do menino. Virou a cabeça e o olhou com um olhar de impaciência.

— Humanos, humanos. Sempre achando que só eles falam e pensam. Sempre pensando que só eles podem conversar e se relacionar com os deuses. E pior, com a crença de que são superiores aos animais. Quando vocês vão se conscientizar de que na medição da criação e formação do princípio, vocês surgiram junto com os outros animais e plantas? E de que estão sujeitos aos deuses e senhores de lugares, animais e plantas, coisa que nenhum outro ser vivo está? HEIN?

Sérgio balançou a cabeça. Parecia se lembrar de algo relacionado com o que a arara lhe falava. Mas onde? Quando? Será que ele lera em algum livro de histórias fantásticas. Talvez, porque ele já tinha lido muita coisa. Mas onde ele viu algo sobre aquilo? Nas Crônicas de Nárnia? Ou em O Hobbit, Senhor dos anéis. Talvez. Esses livros eram dados a ensinamentos. Devia ter sido em algum livro assim.

— Mas, voltando ao assunto que me trouxe até você – a arara continuou agora falando de forma acertada, sem pular palavras, como estava fazendo antes. – Eu tenho um recado urgente de Tupã para você.

— Como assim? Um recado de quem? Quem é esse aí que você falouQue língua é essa ... é língua de índio, não é? Eu não conheço ninguém com um nome parecido com esse – o garoto mostrou-se indignado. Não bastava ele estar louco. Tinha que estar consciente de sua loucura.

Espera aí? Se ele estava consciente de sua loucura, era sinal de que não estava louco. Ele assistira ao filme Mente brilhante. E uma coisa que ele aprendera é que os loucos não têm noção de que estão loucos. E o que fazem ou veem são normais para eles. Então isso significava que ele não estava louco. Bom, se não estava louco então estava sonhando, pensou.

— Humanos, humanos. O que será que os humanos adultos ensinam para seus filhotes nessas tais escolas onde passam tanto tempo? Por que você não sabe quem é Tupã? – a arara estridente, estava cada vez mais indignada. Ele sentiu as garras dela apertarem sua carne por momentos e doeu.

— E eu tenho que conhecer tudo e todo mundo, por acaso? – Sérgio decidiu entrar no jogo. Se não estava louco estava dormindo. Logo acordaria. Mas antes de acordar queria aproveitar o máximo do sonho e do que aquele pássaro tinha para lhe dizer. 


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora