Sorri porque era patético imaginar que estava
depositando toda a minha segurança em um pedaço de papel, e chorei porque
era apenas um pedaço de papel.

Manter-se aquinhentos metros de distância. Não entrar em contato comigo ou com qualquer pessoa da minha família. Não frequentar os mesmos locais que eu. Manter-se afastado da nossa casa. Muito bonito na teoria, mas completamente inútil para quem vivia com um medo
constante, assim como eu.

Ainda assim, confiava na justiça porque era tudo que me restava. Se não acreditasse que ela poderia fazer algo por mim, minha única opção seria
desistir.Meus minutos de descanso acabaram e voltei a trabalhar, ainda pensando
que, em três semanas, as feridas que estavam começando a cicatrizar seriam expostas diante de pessoas que nunca vira na vida. Um juiz, umpromotor, uma dvogado…Gente que se quer sabia quem eu era, ou oque eu sentia. Gente que lidava todos os dias com pessoas tão machucadas quanto eu e minha filha.

(...)

Olhei para a sala à minha volta e me senti sufocada. Hoje era pior ainda.Fazia dois dias que recebera aintimação e não conseguia parar de pensar na
audiência.

O lugar em que estávamos era o mais aconchegante possível, e mesmo assim eu sentia como se enfrentasse o frio mais terrível cada vez que atravessava aporta. Sabia com exatidão oque as cores, os quadros e os desenhos escondiam.Se essas paredes sentissem toda a dor das pessoas que passavam por ali,estariam sangrando.

Minha filha se mexeu em meus braços e soube que sua vontade também era de não estar ali, mas esse era o nosso ritual havia dois meses. Duas vezes por semana, trazia Malu para conversar com a psicóloga indicada pelo juiz, na
esperança de que ela se abrisse e resolvesse voltar a falar.

Todos os dias, quando abria os olhos, tinha esperança de que a minha menina pudesse sair do casulo em que se escondera. Todos os dias, quando ela
sorria para mim, eu me imaginava ouvindo sua doce voz me chamar de mamãe.

Porém, tudo que recebia era um punhado de frustração. Mas em dias como aqueles, minhas expectativas dobravam. Quando íamos ao Creas,* ignorava o
que aquelas paredes escondiam e me concentrava na esperança que insistia em permanecer em meu peito.

—MariaLuiza.
Respirei fundo quando o nome da minha filha foi chamado e me obriguei a sorrir para a psicóloga quando ela abriu a porta para passarmos, porque era uma tristeza dolorida ter que estar ali.

Sonhava todos os dias como fim dessepesadelo. As duas horas seguintes foram repletas de nada. Comecei a me desesperar quando saí mais uma vez do consultório sem que Malu dissesse uma palavra.

Todos os esforços terminavam com lágrimas da minha filha.
Mais um dia se passara e tudo que conseguia pensar era que eu mesma destruíra a minha vida.

Em dias assim, tinha certeza de que Dennis me preparara para aquele momento. Para aquele sofrimento. A sensação era de que ainda podia ouvir suas
palavras estalando em meus ouvidos e matando cada vez mais a Elisabeth dentro de mim. Estar sozinha e completamente perdida não aconteceu por acaso.

Tudo isso era fruto dasvárias escolhas que fora obrigada a fazer ao longo dos anos.
Os amigos que deixara, a família que nunca mais vira, os lugares que parara de frequentar, as ordens que aceitara. Caminhos que me trouxeram à solidão que vivia agora.

É engraçado como as pessoas julgam relacionamentos como o que tive. Para elas, terminar seria a solução mágica. Depois disso, tudo ficaria bem, não é mesmo? Acontece que elas não sabem que somos envenenadas durante anos. Pequenas doses de abusos e agressões que demoram para fazer efeito, mas que nos matam para o mundo. Depois do fim, ainda temos que lidar com nossa
mente fragmentada e um coração doente. Aprendemos a viver cercadas por medo, insegurança, desconfiança e todos os outros sentimentos negativos que existem. Não nos recuperamos depois do fim.

A verdade é que continuamos, por um bom tempo, reféns de todo  o terror que um dia vivemos. E o quemais dói é saber que acabamos aprendendo a conviver com tudo isso, que passa a ser parte do nosso dia-a-dia. E tinha absoluta certeza de que, mesmo longe, ele sabia que ainda controlava a minha vida como se fosse sua.

Malu soltou alguns gemidos e imediatamente virei. Ao meu lado na cama, ela dormia abraçada ao seu urso favorito, mas uma de suas mãos segurava meu braço, como se eu pudesse sumir a qualquer momento. Ela gemeu mais uma vez, e meu coração parou, porque tive certeza de que murmurara palavras completas. Nosso quarto estava iluminado apenas por um abajur que ficava em uma pequena prateleira ao lado da cama,e foi através dessa luz que inclineio corpo, aproximando meu rosto dela.

—Mamãe—sussurrou, quase inaudível, e meu coração parou de bater por alguns segundos. Tive que me segurar para não desmontar enquanto a envolvia
por completo em meus braços. Lágrimas rolaram pelo meu rosto e não tive tempo de secá-las, pois tudo que queria naquele momento era segurar minha filha e prometera ela que tudo ficaria bem.

—Mamã e está aqui,meu amor.Mamãe sempre estará aqui.

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*CentrodeReferênciaEspecializadadeAssistênciaSocial.

Muito além do AmorWhere stories live. Discover now