E os dias que se seguiram aconteceram a mil por hora. Dissemos para Júlio que estávamos à disposição para o trabalho em Recife e ele ficou radiante. Pedimos uns dias para organizarmos nossa vida e conseguimos sem complicações.
Kris ofereceu um salão de festas de seu condomínio, como sempre, e marcamos uma despedida convidando as pessoas mais presentes em nossas vidas nos últimos anos: as Feiticeiras, Nara, Sandra, Paulinha, Ruth, dona Márcia, mestre Tião, seu Neneco, filho e nora, Dolores e André. Lily veio de São Paulo junto com Ruby. Tinker apareceu e desacompanhada! Aproveitou que o marido viajava. Todas a achamos uma gracinha de barriguinha grande.
- Ai, mas ela tá lindinha grávida! – Kristin apertou suas bochechas.
- Grávida? Eu nem notei! – Ruby mexeu com Rose – A barriga dela sempre foi assim!
- Palhaça! – deu um tapa da outra.
- É menino ou menina? – Regina perguntou.
- Ai não sei! Nós queremos surpresa! Deus é quem sabe!
- Não se preocupe com isso! - Ruby a abraçou. – Com o passar dos anos ele ou ela ainda poderá mudar de idéia...
- Eu que o diga! – brinquei.
Rimos enquanto Tinker perseguia Ruby para dar-lhe umas bolsadas.
- Ai, ai, certas coisas não mudam nunca! – Lily disse rindo.
Reparamos que ela estava toda de preto, tinha uma mecha branca nos cabelos e usava um piercing na sobrancelha.
- E que visual é esse, Lily? – Regina perguntou.
- Ah! É que arrumei um namorado! Ele só não veio porque o pai passou mal ontem.
- E deixa eu adivinhar... o cara é punk? Gótico?
- Na verdade ele é um pouco dos dois...
- Ai, ai, certas coisas não mudam nunca, não é mesmo?! - foi minha vez de dizer.
Sandra e Nara à princípio estavam tristes, mas logo viram o lado bom da situação.
- Agora teremos lugar garantido pra ficar se a gente for pra Recife curtir!
Ruth contou mil estórias sobre Recife, cidade que ela nem conhecia, e terminou dizendo que lá era igualzinho a Araras, a menos das praias. Paulinha contou em segredo para Regina que estava saindo com uma colega de turma da idade dela e que deixaria Ruth tão logo se formasse, em julho. Eu só vim a saber disso muito tempo depois.
- Vocês vêm pra minha formatura não é? – perguntou fazendo beicinho.
- Não sabemos, Paulinha, dependerá de um monte de coisas. Mas iremos tentar, não é Emmy?
- E eu lá sou mulher de perder festa?
Mestre Tião foi com o filho e disse que ele estava conduzindo um trabalho de capoeira com os jovens do morro do Pavão Pavãozinho. Ainda me deu dicas de duas rodas boas para eu jogar em Recife. Ele esteve na cidade fazendo demonstrações algumas vezes.
Dolores e André atualizaram Regina sobre tudo o que rolou na cobertura dos Mills nos últimos tempos, mas ela parecia ouvir sem interesse e com um pouco de tristeza.
Seu Neneco foi sozinho. Sua nora estava no oitavo mês da primeira gravidez e sentia dores de vez em quando. Achou melhor não sair.
- Aquela menina demorou pra engravidar e agora tem muito medo de perder o neném por qualquer coisa.
- Nada de mal há de acontecer. Rezamos sempre por ela desde que soubemos da gravidez.
- Rezam e já deram praticamente o enxoval todo. – riu - Eles tão tudo feliz! Ainda mais que é uma coisa de cada canto. Até das Zuropa! (Europa) – riu de novo – E aquele conjunto de cama, geladeira e fogão que buscaram hoje cedo na tua casa? Tudo bonito e bem cuidado. Veio em boa hora pros dois!
- Eles merecem. – sorri.
- Aquele concerto que você deu lá na minha lojinha, também ficou joinha. Nunca mais deu vazamento! E aqueles azulejo novo mandei colocar e tá fazendo sucesso. E a torneira dourada? Todo mundo acha que eu tô chique!
Rimos juntos. Ele era uma pessoa muito simples que se contentava com pouca coisa.
- Escuta, Seu Neneco. Minha mãe vive em Recife mesmo. Descobri até onde ela mora.
- Eita! E tu falou com ela? – olhou chocado.
- Não. Ela não tava lá.
- E tu vai voltar a procurar ela?
- Não sei!
- Gente, gente! – dona Márcia veio batendo com uma colher em um copo – Silêncio que Kristin quer falar!
- Pode falar! – Regina disse sorrindo.
- Eu queria dizer algumas palavras pra essas duas meninas que entraram nos corações da gente! Eu me lembrei muito de uma cerimônia que aconteceu aqui, nesse mesmo salão, há uns três anos atrás e já me emocionei hoje! – limpou os olhos – Agora vocês vão pra outra cidade fazer a vida e a gente se despede aqui. Vamos dizer que é uma despedida com cara de até logo. - deu tchauzinho sorrindo – Mas eu já vivi o suficiente pra saber que ninguém vai e volta pelo mesmo caminho. A vida é uma sucessão de mudanças constantes, e vocês duas partem pra mais uma mudança. – pausou e olhou para filha, para Ruby e Tinker – Olhem vocês! Cada uma seguindo um rumo diferente! Eu só posso dizer duas coisas contraditórias: que bom que o tempo passa porque tudo muda, e que pena que o tempo passa, - deu um sorriso triste - porque tudo muda! – derramou uma lágrima.
- Eu te entendo perfeitamente! – respondi.
- Eu também! – Lily disse – Então vamos fazer um brinde, porque eu vim prevenida! – foi até a geladeira e pegou uma garrafa de champanhe – Antes que diga qualquer coisa, tem Sprite pra você Tinker! – sorriu - Vamos fazer um brinde, e desejar toda sorte do mundo pra vocês – apontou para Regina e eu – e pra todos nós!
- Olha as taças chegando! – dona Márcia veio trazendo com Ruby.
- Quem trouxe máquina? – Tinker perguntou preocupada.
- Eu! – Regina mostrou a câmera.
- Então, enquanto o povo vai se servindo, vamos tirar a foto clássica das Feiticeiras! – Ruby se posicionou – Kris, clica a gente?
- Com certeza!
- Vem, Regina! Você sabe que é Feiticeira honorária.
- Calma, estou passando os macetes para Kris!
- Vem, linda! – chamei.
Seguramos nossas taças erguidas e olhamos sorridentes para a câmera. A foto ficou incrível.
☆♤☆
Entregamos a quitinete para dona Márcia exatamente no dia 30. Arrumamos parte de nossas coisas dentro de caixas de papelão e deixamos no galpão de Nara. O restante foi para as malas que nos seguiriam para Recife. Na véspera da mudança bateu uma sessão nostalgia.
- Sabe que eu vou sentir saudade daqui? – esfreguei as mãos pelas paredes – Essa quitinete nos abrigou nos primeiros anos de nossa vida juntas.
- Aqui recebemos nossas melhores amigas. – olhava para todos os lados – E Seu Neneco também! – riu.
- Ficou estranho sem cama, né? – perguntei me virando para ela
- Ainda tem sofá cama pelo menos. – sentou-se no sofá sorrindo.
- Regina, - ajoelhei-me em frente a ela – vamos nos despedir daqui essa noite?
Ela sorriu e abaixou a cabeça.
- Ai amor, eu não sei se estou no clima para...
- Sem sexo! – segurei suas mãos – Só um carinho... Eu queria te namorar um pouco e dormir nossa última noite aqui abraçadinha nesse sofá, com você!
- Claro. – afagou meu rosto – Claro que sim, amor. Eu só estou um pouquinho nostálgica... Por isso disse que estou sem clima. – sorriu e beijou-me com muita ternura.
Continuamos o beijo e as carícias foram progredindo lentamente, de tal maneira que acabamos fazendo amor no sofá, ainda sem armá-lo em cama, parando apenas de madrugada para dormir abraçadas e felizes.
Uma vida nova se iniciaria, mas estávamos prontas e dispostas.
Regina deu seu carro para Dolores, que só faltou cair dura no chão emocionada. Claro que isso sem o conhecimento do casal Mills.
Começamos com muito trabalho e aborrecimentos, principalmente depois que Carlos e Bárbara foram embora de vez, mas depois as coisas foram entrando nos eixos.
Passamos duas semanas em um hotel na praia de Pina e depois alugamos um belo apartamento no bairro de Boa Viagem, perto do famoso Edifício Acaiaca. Com a grana equivalente ao aluguel de um apartamento modesto no Rio, conseguimos um com dois quartos, sala grande, cozinha espaçosa, dois banheiros, área de serviço e varanda. E ainda com vista para o mar! Fiquei radiante. Morávamos no 10° andar. Uma vez instaladas, mandamos vir do Rio o resto de nossas coisas.
Alugamos, sob orientação de Júlio, uma salinha em um prédio no bairro de Boa Vista. Trabalhávamos com visão para o rio e a ponte Duarte Coelho. Não é exagero dizer que Recife é a Veneza brasileira por conta dos rios Capibaribe e Beberibe cortando a cidade e de suas belas pontes.
O shopping foi construído com sucesso. Conseguimos mudar algumas coisinhas do projeto original, por conta das falhas anteriores, e foi a primeira obra da cidade com estruturas em aço expostas. Isso me tirou muitas noites de sono, mas valeu à pena. Regina também mostrou seu estilo na composição de alguns interiores.
Graças a repercussão disso, ao conhecimento de Regina em arquitetura e a seu charme, conseguimos entrar no disputadíssimo filão das obras de regeneração. Ganhamos uma concorrência para uma empreitada em Olinda e no bairro do Recife antigo, contando com a colaboração de restauradores renomados, que nos garantiu trabalho até o final do ano.
Arthur e sua esposa foram para os Estados Unidos atrás de um médico famoso, para que ele se recuperasse. Com isso Júlio continuava fazendo o que queria e avacalhando com obras em vários lugares.
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Não procurei mais por minha mãe, embora sonhasse com isso quase todas as noites. Não falava a respeito e preferia fugir desses pensamentos. Eu tinha medo de ficar frente a frente com ela Regina avisou a vovó que morávamos em Recife e a velhinha ficou louca para conhecer a cidade, mas seu coração não estava ajudando e o médico proibia a viagem.
Em meados de julho voltamos para o Rio, só por conta da formatura de Paulinha. Ela já havia terminado com Ruth, quem nem foi na cerimônia. Havia feito prova para o Corpo de Oficiais da Marinha e o resultado tinha acabado de sair: aprovada! Mas ainda faltavam os exames médicos, testes psicotécnicos e entrevistas. Sua nova namorada, Zelma, era de uma família classe média alta. Ambas estavam vivendo na Urca, em um dos apartamentos que a família de Zelma possuía.
Achei Paulinha muito diferente, meio metida e fazendo tipo de mulher fatal. Chegou a flertar comigo e a deslizar seu pé na minha perna, o que me fez trocar de lugar na mesa. Zelma era antipática e não foi com minha cara logo de estalo; o que foi recíproco. Regina, que já andava decepcionada com a amiga, ficou ainda mais, e aquela festa marcou o início do fim da amizade que tinham. Não estávamos nos sentindo nenhum pouco à vontade e eu me arrependi muito por ter ido.
- Desculpa perguntar, mas... e Ruth? – Regina foi direto ao assunto, quando Zelma se afastou.
- Aquela velhaca louca? Sei lá! Deve estar por aí contando suas histórias... – fazia gestos afetados.
- Perdoe, Paulinha, mas você foi muito errada com Ruth. Ela tem suas loucuras, sim, mas você sempre soube disso! Além do mais tem um excelente coração! – Regina comentou chateada.
- Ah! Ruth é coisa do passado! Ela que vá pra Araras ou fique naquele quarto e sala fudido no bairro Peixoto. Tô noutra!
- Fudido, agora, que você tem outro lugar pra morar! Mas por muito tempo, quando o alojamento da UFRJ era sua única opção, você não dizia isso. Ruth serviu pra te sustentar por todo esse tempo e, agora que você arrumou outra mais nova e com grana, descobriu um monte de defeitos na pobre.
- Desde quando ela tem uma advogada de defesa tão boa? - Zelma chegou e perguntou com deboche.
- Está sendo inconveniente, Swan! – Paulinha disse rispidamente.
- É, eu sinto que sou desde que cheguei! – levantei-me da mesa – Vem comigo, linda? – estendi a mão.
- Claro, meu amor! – aceitou meu gesto – Não há porque ficar aqui. – olhou para Paulinha – Toda sorte do mundo, querida, - disse com desdém e deboche. - mas a vida ainda vai te ensinar muito!
Fomos embora, saindo da festa sem olhar para trás.