Cheguei em casa e, mal abri a porta, Regina estava pulando como um bichinho feliz.
- Você veio cedo! – me abraçou sorridente – Por que? - seu sorriso era lindo.
- Longa estória! – beijei-a nos lábios docemente. - Onde está nossa vovó?
Nesse momento vovó Granny aparece na porta do quarto.
- Olá, querida! – abriu um belo sorriso.
Ela usava uma saia de pano até os joelhos, uma blusa branca de rendas e um casaquinho de linha. Estava mais magra e um pouco abatida. Caminhei até ela e abracei-a com vontade. Ela retribuiu com carinho.
- Como foi a viagem? Teve medo?- coloquei minha mochila no chão.
- Medo? Eu? Que nada! Tive um pavor indescritível! – rimos – Mas a viagem foi boa.
- Vovó disse que teve uma bela visão aérea do Rio, passando bem próxima ao Pão de Açúcar.
- É mesmo? Que sorte! Dizem que isso não é muito comum quando se chega pelo Galeão. Mas, e então? O que as duas aprontaram até agora?
- Por enquanto Regina e eu arrumamos minhas coisas no armário de vocês, eu a assisti fazendo o almoço e conversamos bastante. Ela me contou que você está bem empregada e já ganhou até um aumento!
- Ah! – sorri tímida – É! Depois de um trabalho complicado que nós concluímos, o chefe me deu um aumento mesmo.
- Ele adorou o modo dela trabalhar! – Regina disse orgulhosa.
- Então... – tentei desconversar - Que tal almoçarmos, você dorme um pouco para descansar e depois damos uma volta pelo calçadão? Faz um pouco de frio, mas não vai chover e o dia está até bonito.
- Mas veja ela me mandando dormir, Regina? – pôs as mãos na cintura e sorriu para a neta – Quem é a mais velha aqui?
- Ela está certa, vovó! A viagem é cansativa e é bom recuperar as energias.
- Não se preocupe, vó. Nós vamos levá-la para conhecer tudo na cidade.
- Eu gostei dessa parte. – sorriu contente.
- Vou trocar de roupa e daí se quiserem, almoçamos.
- Sim, eu concordo! Quero provar o gosto da comida brasileira que minha neta já sabe fazer! – passou a mão na barriga.
- E você ainda não nos disse porque chegou cedo! – Regina segurou minha mão e olhou para minha blusa desconfiada – Eu não conheço essa blusa!
- Não é minha. Mas eu conto, espere eu trocar de roupa.
Fui para o banheiro me trocar e elas se acomodaram na cozinha. Regina serviu os pratos e nos sentamos à mesa.
- Este apartamento é simples, mas muito bonito. Tão agradável! É parecido com as duas! Tudo rosa e branco. Acredito que seja coisa de minha neta. – sorriu e passou a mão no rosto dela.
- Na verdade, foi a dona que arrumou assim e eu achei a cara dela mesmo. Quando vi me interessei de pronto!
- E quando ela me apresentou a ele eu já me senti morando aqui. – Regina complementou. - Mas e então, amor? Por que veio mais cedo? – perguntou olhando para mim.
- Bem. Eu estava muito bem na obra quando de repente começou um... – disse em português – Regina, como é tiroteio em inglês?
- Oh meu Deus, Emmy! E você diz isso assim??
- Mas o que? – vovó perguntou desconsertada
- Ela disse que houve um tiroteio no lugar onde a obra está acontecendo.
- Meu Deus, e por que isso??? – perguntou chocada.
- É que o trabalho é em uma favela, em um lugar pobre, e infelizmente muitos traficantes vão para estes lugares para mandar nas pessoas e ganhar dinheiro. Daí quando surge briga entre eles, ou quando a polícia cisma de ir atrás deles acontece isso.
- E nesse caso, por que aconteceu? – perguntou ainda apavorada.
- Não sei, vó! Só sei que foi uma loucura. Eu corri e chamei os pedreiros para fugirem também. Levei comigo uma menininha que estava sozinha chorando e nós nos escondemos em uma vala cheia de barro e esgoto. Ficamos imundos!
- Ai Emmy, e eu sem saber desse perigo! – pôs sua mão sobre a minha.
- Mas nada me aconteceu, linda, e nem com nenhum de nós. Alguns arranhões e muito susto, só isso. Depois eu levei a menina até a mãe e ela era filha de um traficante que apareceu muito bem armado atrás de mim.
- Deus! E então?
- Ele me disse umas bobagens e depois agradeceu. Disse que não ia mais ter trabalho por hoje, aí eu dispensei o pessoal e fui para o escritório. Lá eu tomei banho e vi que esqueci a blusa na obra, aí a secretária me emprestou aquela que eu estava usando. O chefe então me dispensou por hoje.
- Blusa da secretária...? – Regina perguntou com uma cara não muito boa.
- É! – olhei para vovó, querendo mudar de assunto – Mas não se impressione, porque isso não acontece sempre e nem em todo lugar.
- Cada país com seu problema. Na Inglaterra tivemos guerras, os conflitos com os irlandeses e hoje rumores de terrorismo. Vocês têm isso. Paciência!
Reparei que Regina me olhava desconfiada, mas não retornou o assunto da blusa de Simone. Porém eu sabia que ela voltaria a falar sobre isso.
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Apesar de seus protestos, vovó Granny deitou na cama, dizendo que só iria descansar os olhos e acabou dormindo como pedra. Regina disse que ainda não havia falado da safadeza de seu pai, mas no momento certo o faria. Eu estava colocando as roupas sujas de molho quando ela perguntou:
- Por que você estava usando uma blusa da Simone?
"Ai, eu sabia!"
- Eu disse. Eu não tinha outra e ela se ofereceu pra me emprestar aquela.
- Mas se você mal conversa com ela, por que se ofereceu?
Respirei fundo e disse a verdade:
- Quando eu e Raimundinho chegamos no escritório, naquele estado deplorável, ela foi a primeira a nos ver e se espantou. Tirei os sapatos, fui pro banheiro e tirei a camiseta lá dentro. Só aí percebi que não tinha trazido a minha blusa comigo. Ao mesmo tempo eu estava chateada e me apoiei na pia pensando. Ela chegou, perguntou do ocorrido, eu falei ela viu que eu não tinha roupa e ofereceu a dela. Só isso.
- Só isso? Ela viu você sem blusa e você diz só isso? – cruzou os braços e me olhou séria.
- Só. Eu tava de sutiã, Regina. Além do mais somos mulheres. Qual mulher nunca viu uma colega de sutiã? – não olhei para ela.
- Então ela é sua colega agora? – perguntou com deboche.
- E não é? Colega pra mim é quem trabalha no mesmo lugar, e é esse o caso, não é?
– É só isso mesmo, Emma?? – perguntou mais firme.
Fechei os olhos, respirei fundo e disse:
- Tá bom, Regina. Ela veio com um papo de duplo sentido e insinuou que tava a fim e não dei abertura. Aí eu disse que ela ia ficar na vontade e entrei no box. Então ela deixou a blusa e a toalha pra eu usar e saiu.
- Ah, então você ainda se enxugou com a toalha dela? – perguntou contrariada.
- Amor, eu tava sem toalha. Esqueci! – olhei para ela.
- E como ela percebeu tudo isso, todo esse seu esquecimento? – seu rosto transparecia muita raiva.
Em todo esse tempo em que nos relacionamos desconhecia essa sua face ciumenta descontrolada.
- Eu não sei! Sei lá! - passei a mão nos cabelos e coloquei as mãos na cintura.
- Talvez porque tenha mostrado muita coisa para ela, não é Emma? – senti um tom de choro na sua voz, mas ela se prendeu.
- O que você pensa? Que eu transei com ela no banheiro do trabalho? – olhei para ela e perguntei sem pensar.
- E por que será que eu sinto que era exatamente isso que você queria fazer? – uma lágrima escorreu de seus olhos.
"Ai, meu Deus..."
- Amor, para com isso! – me aproximei dela – Da onde você tirou isso? Vem cá, minha linda, não perde tempo com besteira. – tentei beijá-la.
Ela se esquivou e olhou firme nos meus olhos.
- Ela te atrai?
Fiquei sem graça e respondi.
- E por que isso agora? Para com isso, amor! Vem aqui! – tentei abraçá-la de novo, mas ela se esquivou novamente
- Pare com isso você! Por que não assume que ela te atrai? – controlava-se para não chorar.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e ela me fixou de um jeito que eu não poderia me negar a responder. Não sabia mentir para ela e não tive outra escolha senão dizer a verdade.Suspirei cansada.
- Eu... eu... eu acho ela... eu... – olhei para cima, respirei fundo e pus as mãos na cabeça – Eu acho ela gostosa e é só! – olhei para Regina – Muitas mulheres e homens são bonitos e atraentes e eu os acho assim, mas não quer dizer que eu vá pular em cima deles e transar! Eu tenho certeza de que deve haver alguém que você ache atraente também e nem por isso me trai.
- Infelizmente eu nunca me senti atraída por mais ninguém além de você. – seu tom era muito duro.
- Eu sou fiel a você, Regina, e isso não é difícil pra mim! – falei com confiança. Era a mais pura verdade.
- É mesmo? – ela começou a me apalpar por debaixo da roupa e levantou minha blusa para olhar as costas – Ela arranha? Hein? Ela é como eu que te arranha toda? Hum? – suas mãos percorriam minhas costas em desespero.
- Pára com isso, não vê que não tem cabimento o que você tá fazendo? – me afastei ajeitando a roupa.
Ela andou até a porta do quarto. Vovó ainda dormia. Olhei para o relógio. Eram quatro da tarde.
- Quer dizer que você não confia em mim?
Ela ficou calada e secava as lágrimas com as mãos.
- Tudo bem, Regina. – voltei a mexer na roupa que estava de molho – Eu já acabei aqui mesmo. – fui até o sofá e me sentei – Vem aqui, vem? Eu quero conversar bem honestamente com você. Senta aqui comigo, vem minha linda? – falei com muita delicadeza.
Ela veio e sentou-se no meu colo, de cabeça baixa e cara amarrada.
– Olha pra mim, minha morena! – ela olhou – Eu te amo! Entenda uma coisa, amor, não é porque eu venha achar alguém atraente que significa que eu vá te trair. Eu não quero ela e nem ninguém mais. Eu tenho você! Eu só quero você! – sorri e passei os dedos secando suas lágrimas – Eu te amo! E não entendi porque você deu tanto valor ao que aconteceu! – beijei-a no rosto e depois na boca – Você não percebe que eu te amo? Não nota nas minhas atitudes? – segurei seu rosto com as mãos – Eu dou tudo de mim pra você, e você não acredita? Hein? – falava com muita delicadeza.
Ela começou a falar como uma criança envergonhada:
- Eu tive medo de perder você por causa do tiroteio e depois veio essa...mulher... – mexia nos meus cabelos.
- Que não representa nada e com quem eu não vou fazer nada além de trabalhar! Jamais trocaria o que temos, jamais perderia seu amor, destruiria nosso casamento por qualquer outra pessoa. - peguei sua mão e a espalmei em meu peito. - Eu só pertenço a você, Regina...meu coração não quer e não ama mais ninguém, além de você!
Disse firmemente olhando profundamente em seus olhos.Ela abaixou a cabeça e disse baixinho:
- Desculpa...
- Olha pra mim! – ela olhou – Não há o que desculpar. Agora me prometa que vai confiar mais em mim.
Ela me olhou nos olhos e disse:
- Prometo! – selou nossos lábios de forma terna, me abraçando com força, deitando a cabeça em meu ombro.
Sorri e acariciei seus cabelos.
- Agora vamos lavar esse rostinho, porque eu não quero que sua avó a veja assim chorosa. Vem.
Fomos ao banheiro e ela se recompôs. Sentamos abraçadas no sofá cama e permanecemos em silêncio por muito tempo, curtindo um carinho gostoso e nos olhando. Não era necessário usar palavras quando nossos olhares diziam tudo o que sentíamos uma pela outra.
Vovó acordou meia hora depois e nem desconfiou de nada...
Se Regina soubesse o que sentia por ela não teria um milímetro sequer de preocupação. Eu era dela, como não saberia nem explicar. Ninguém poderia me fazer sequer pensar em traí-la.
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Caminhamos com vovó pelo calçadão e ela achava tudo bonito e cheio de vida. O céu estava limpo, mas soprava um vento frio, que ela tirava de letra. Regina e eu caminhávamos de braços dados com ela, uma de cada lado.
- Eu nem acredito que estou aqui! - dizia entusiasmada. - Vocês já se deram conta de que Copacabana é o bairro mais famoso do mundo? E eu estou aqui, passeando na orla e vendo essa beleza toda!!
Neste momento, um rapaz bonito e atlético passa correndo sem camisa.
- E mais umas belezas dessas! Ah, se eu fosse 50 anos mais nova.. - virou-se para vê-lo passar – Em Londres não tem homem assim não. O que eles comem aqui? Deus seja louvado!
Gargalhamos e respondi:
- A senhora pode levar um desses na bagagem, vovó. Alguns estão só esperando o convite.
- Ah não, filha. Eu já não aguento mais certas coisas. O coração já está fraco e eu acho que acabaria morrendo de... felicidade.
Rimos novamente e Regina comentou:
- Oh, vovó, você não tem jeito!
Caminhamos por mais alguns minutos e ofereci tomarmos uma água de côco. Elas aceitaram e sentamos em um quiosque.
- Amanhã, se o céu estiver aberto como agora, vamos levá-la ao Pão de Açúcar e ao Corcovado. Depois daremos uns mergulhos no mar.
- São pontos turísticos bem famosos. Quem nunca ouviu falar? Eu quero sim!
- Precisamos apenas comprar um maiô para a senhora, vovó! - Regina sugeriu.
- Eu? De maiô?
- A gente procura um maiô legal em uma loja e a senhora escolhe um que a deixe à vontade. – ri.
- Coisa a se pensar... – fez cara de dúvida mexendo conosco – Regina, você aqui usa aqueles biquínis minúsculos que se vê na TV?
- E do tipo transparente! Um dia desses ela comprou um tão transparente que não conseguiu achar quando procurou... – brinquei.
- Ah, é? Você está muito mudada, menina! – fingiu estar brava.
- Vai acreditar nessa boba, vovó? – me deu um tapinha no braço – Ela é quem tem um biquíni que deixa pouco para imaginar.
- Já vi que vão querer me comprar um maiô com a bunda de fora e vou ficar conhecida como a velha inglesa tarada da praia.
- Ah, mas quando você ver os outros biquínis e maiôs vai encontrar várias outras colegas taradas. – brinquei.
- A começar por Emmy... – me deu outro tapa e sorriu.
- Ai ai, meninas, vocês me divertem! – olhou para a neta – Filha, você ainda não me contou como estão as coisas com seus pais. Depois que saiu de casa, o que eles fizeram? Como reagiram?
Regina me olhou como se perguntasse o que fazer. Balancei a cabeça positivamente, a incentivando a dizer toda a verdade. Ela então mordeu o lábio inferior e começou a falar:
- Sabe vovó, há coisas que não contei ainda...
- Estou ouvindo.
- Eu não vejo meus pais desde a festa de natal. Eles com certeza romperam comigo. E papai.. Bem, ele me fez algo muito sério e que me magoou muito. Mas não fez sozinho. Mamãe colaborou com tudo.
- E o que foi? – senti que já estava se aborrecendo.
- Calma, vovó. Deixe ela falar e procure não ficar tensa. – segurei sua mão. Regina prosseguiu.
- Papai encerrou a conta no banco e pegou todo o dinheiro que a senhora me deu. Mamãe, há uns meses atrás, me pediu para assinar um pretenso abaixo assinado do condomínio e com essa assinatura meu pai "provou" no banco que eu estava de acordo com a transação. Não sei direito como ele fez tudo, mas o fato é que eu fiquei sem nada. Se Emma não estivesse trabalhando estaríamos passando fome.
- Eu tinha ainda o que sobrou do dinheiro do prêmio que ganhei no ano passado, e mais um dinheiro de um trabalho prestado a meu ex professor orientador. Não sofremos financeiramente como chegamos a pensar que aconteceria, mas eu me aborreci muito com o fato. Achei uma... nem sei como dizer em inglês.
- Pois eu sei: uma grande desonestidade, falta de caráter e de decência. Onde Henry está com a cabeça? O que ele pensa que é? O nome disso é roubo e eu não criei meu único filho para ser um ladrão. E ladrão da própria filha! Que ele não concorde com suas escolhas meu anjo, eu respeito, mas que ele seja esse canalha sujo, é outra coisa! Ele não pode fazer isso e ficar assim impune. Ah, não! – revoltou-se a ponto de ficar vermelha.
- Calma, vovó! Eu não quis falar por causa do seu coração e já me arrependi.
- Você não tem do que se arrepender! Eu queria ter sabido desde o começo. Quando ele fez isso?
- Em fevereiro.
- Fevereiro!? E estamos já no meio do ano!! Ah não, isso não. – levantou-se resoluta – Eu quero ir falar com ele agora.
- Mas vó... Eu nem sei se ele está viajando ou... – Regina arregalou os olhos.
- Vovó, olha, eu... – tentei argumentar
- Nada de vovó. Vocês me dirão onde o safado do meu filho mora ou eu vou ter que descobrir sozinha? - pôs as mãos na cintura
Regina e eu nos entreolhamos.
- Danou-se!! – exclamei.