Capítulo 30

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Antonio não apareceu naquele dia. Algo em seu trabalho atrapalhou a visita a sua filha. A saudade já doía no peito, a vontade de abraçar a sua pequena, mas a chegada do novo sistema merecia a sua atenção. Só esperava que os militares estivessem atentos, a dificuldade de importar algo era gritante mas precisava tentar. No final do dia voltou para casa sozinho, não tinha fome e nem vontade de comer. Também nada se comparava a comida de Janete. Nada o alimentava tão bem, ele não pensou sentir tanta falta...

Por sua vez, já de noite, Janete chorava em seu travesseiro desejando um consolo, um acalento. Não tinha mais os pais ao seu lado, Julita deixara bem claro na última visita. Seu pai não apareceu em nenhum momento e apenas Claudia estava com ela, Bruno de longe e Marcelo fazendo sua segurança. Mas nada tirava aquele vazio da cama, do peito, da mesa na hora do café da manhã.

Apesar da amizade e força deles, já tinha sido alvo de olhares de esguela, a nova desquitada da rua. Janete chorou abraçada ao travesseiro que era de Antonio, tentando ali encontrar as forças necessárias para continuar de cabeça erguida diante da sociedade nada permissiva a sua nova posição. Gostaria sim de mandar todos catarem coquinho na praia, mas sua coragem ficava sempre do lado de fora de seu quarto, agora com o berço de Joana ao lado da cama. Apenas ela e a filha sabiam. Seriam as duas contra todo preconceito...

4 meses depois...

Janete se olhava no espelho com uma calça social preta e blusa de botão. A pasta de couro marrom cheia de currículos impressos que Bruno ajudou e Claudia atrás afofando os seus cabelos, agora no meio das costas.

- Isso vai dá certo? - o batom claro e o traço delicado nos olhos não combinavam com o desânimo.

- Claro que vai,  Nete! Temos que ter fé. E você como devota a Nossa Senhora, deve acreditar nisso. - o ânimo que Claudia tentava colocar na amiga parecia não surtir efeito.

- Eu já fiz isso, Cacau. Mas não está dando certo...

- Você verá quando chegar lá. A primeira entrevista é na escola aqui no bairro. - agendada há algum tempo. Depois Janete entregaria mais currículos.

- Cuide da minha menina Cacau. Quando eu passar por um orelhão eu ligo para cá.

- Nós ficaremos bem, mamãe - Claudia pegou a Joana no colo, agora com cinco meses de idade e o corpo roliço. Janete riu e saiu de casa, passando pelo Marcelo que não trabalhava mais de terno. A pedido dela.

Ele acenou com a cabeça e ela fez o mesmo gesto, saiu caminhando em direção a escola a três quarteirões dali. Passou pelo carro de Antonio e não parou, era cordial com ele quando ia visitar a filha mas naquele momento não queria ve-lo,  se não cairia na Janete de sempre, dando explicações.

Olhou o céu nublado e rezou como sabia, sua mãe não falava e fez com o pai também não falasse, mesmo chegando dinheiro desconhecido todo mês além do cheque de Antonio. Janete sabia que o pai não deixaria.

Precisava trabalhar e colocar em prática o seu conhecimento, focar em casa estava fazendo o esquecimento lhe consumir e apesar dos livros lidos nada se comparava ao exercício. Chegou em frente a escola e respirou fundo. De muros beges e nome colorido, a escola atendia crianças da alfabetização até o segundo grau, ou seja, ela teria bastante campo ali.

Se identificou para o porteiro, que liberou a passagem e lhe indicou o caminho da diretoria. O pátio estava com alguns alunos e assim que o sinal bateu ela viu a multidão de crianças. Sorriu ao pensar que era aquilo mesmo que ela queria fazer.

Bateu na porta indicada e foi permitida a entrada. Em uma sala simples, com mesa de madeira clara e uns arquivos ao lado, uma senhora de cabelos brancos e austeira estava sentada com as costas retas. Sorriu ao ver Janete e fez um sinal para se sentar.

- Bom dia. Sou Janete...

- Ferreira. - Janete treumeu, não era mais Ferreira seu sobrenome. - Sim, eu marquei sua entrevista. Gostei muito do seu curriculo. Formada na USP em Letras português e inglês. Para o ano eu preciso exatamente de você. Tem alguma experiência além dos estágios?

- Ser mãe serve? - nervosa colocou o cabelo atrás da orelha, a senhora sorriu e esperou. - Não, apenas os estágios senhora...

- Carmem. Ser mãe é uma benção! Seu marido permite o trabalho fora? - aquilo pegou Janete de surpresa, não sabia que precisava dessa confirmação,  e também não tinha mais marido. O que fazer em uma entrevista de emprego? Mentir ela não sabia, o nervosismo a denunciaria qualquer deslize. Só lhe restava a verdade.

- Perdão senhora Carmem. Eu não tenho marido para pedir permissão,  por isso preciso do emprego.

O espanto mal disfarçado no rosto de Carmem a deixou mais desanimada do que estava.

- Está aqui que você mora nesse bairro.

- Sim, há três quarteirões daqui. - as mãos estavam no colo e não paravam quietas. - Me separei recentemente.

- Entendo - pareceu mais um suspiro do que palavra. Carmem relaxou um pouco na cadeira e deixou o currículo de Janete na mesa. - Verei o que posso fazer por você, Janete. Realmente sinto muito pelo seu casamento. Te ligo assim que tiver a resposta. - se levantou e apertou a mão de Janete, levando até a porta.

Janete agradeceu e saiu. Carmem fechou a porta devagar e se encostou nela. Gostou muito da candidata, mas lembrou do caso da professora desquitada no ano anterior e um pai de aluno, casado. Até a diretora abafar o caso fora um sufoco e teve que demitir a professora. Não poderia correr esse risco mais uma vez.

....

Já na rua, Janete andou até o ponto de ônibus para chegar ao centro da cidade. Lá teriam escolas que não se importaria se ela era desquitada ou não. Parou no orelhão e colocou a ficha, falou com Claudia e Marcelo, mandou beijos em sua filha e desligou. Os ombros estavam caídos mas ela precisava continuar pela Joana. Ela veria a mãe forte, mesmo que chorasse todas as noites.

Pegou o ônibus confiante, restava apenas rezar. Desceu do transporte e foi paquerada por alguns homens, não deu bola porque agora era mãe e casa... Parou e se reprimiu em pensamento.

"Não! Sou Janete Souza. Não mais Ferreira. Tenho que mudar esses currículos e documentos o mais rápido possivel", o pensamento lhe fez correr e firme distribuiu seus papéis pelas escolas. Algumas grandes, outras pequenas, mas todos aceitaram de bom grado. Com um sorriso, Janete parou para almoçar.

Na última escola sentiu uma acolhida melhor do que nas outras o que a fez sorrir sentada no restaurante modesto. Em um gesto simples colocou os cabelos para lado e começou a comer.

- Você não é daqui... - a voz masculina a sobressaltou, deixou o garfo no prato e olhou na direção do som...

O início do sonhoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora