Bem-vindas ao século XX - II

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- A primeira coisa que você deve saber é: Não ouça nada que as mais velhas tenham a dizer.

Uma sobrancelha foi erguida.

- As mais velhas?

- Ellie e Sophie. São as mais velhas em idade e as primeiras a ser transformadas. São também as mais mortais, mais intensas e mais egoístas vampiras do grupo. Tudo que elas fazem, fazem com segundas intenções secretas. Não as escute.

Naomi piscou os olhos idênticos aos meus. Pela primeira vez, parecia preocupada, mesmo tentando parecer indiferente.

- Mesmo?

Sophie, que então era a única acordada, finalmente saiu do transe e sorriu para mim.

- Sim, mas tem outra coisa que você deve saber: Eu sou ainda mais velha, mais egoísta e mais perigosas do que as duas.

Algum lugar da costa oeste Estados Unidos

07 de janeiro de 1901

As perguntas de Naomi continuaram enquanto viajávamos e depois que chegamos: "Por que nós nos chamamos de Exército?" "Quem era Deyah?" "Quem era Pierre?" "Então vampiros têm alma?" "Então vampiros são ladrões de alma?". Em algum ponto, Ellie abriu a mala de couro que tinha todas nossas coisas importantes e tirou meu diário lá de dentro, dizendo a Naomi que ele tinha todas as respostas.

O silêncio durou pouco tempo: Dois dias depois, ela me procurou com perguntas novas "Sophie sabia que Ellie dormiu com o noivo dela?", "Qual foi a sensação de matar sua mãe?", "Como Deyah morreu?", "Qual era o plano dela?" "Você se pergunta onde está Pierre, já que é impossível que ele esteja no Inferno propriamente dito?".

Diante desta última eu congelei.

- O que você quer dizer?

Estávamos em uma estrada, indo em direção à cidade mais próxima, mas ao quinto dia de viagem Ellie sentiu o cheiro de um acampamento e disse que precisava caçar. Saiu como as outras cinco, me deixando escondida com Naomi entre as árvores, cuidando de nossas coisas. Naomi começou a gesticular:

- É impossível para um ser que é físico ir para o inferno, isso foi algo que ficou claro para mim há algum tempo. Seres humanos são espirituais e físicos, mas só temos acessos a outros planos quando se tornam plenamente espirituais. Mesmo Pierre sendo meio demônio, ele precisaria abandonar seu corpo por definitivo para ir diretamente ao inferno e como ele é um portal, que consegue se comunicar diretamente com os demônios e com seres físicos, não acredito que ele seria burro de fazer isso.

Fui pega de surpresa pela lógica dela, mas antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, senti o frio que os olhos de Ellie passavam sem sequer vê-la ou ouvi-la se aproximar.

- Não nos importamos com o que quer que Pierre esteja fazendo, desde que ele não nos incomode. – Disse, baixo, mas ferozmente, atirando a lenha que roubara do acampamento no chão.

Naomi não se abalou.

- Ele tem uma ligação eterna a esse grupo, Ellie. Ele é do seu sangue e foi criado por você, Kat e Sophie. Ele não foi embora para nunca mais voltar, nem sabemos o motivo pelo qual ele foi. Em algum ponto ele vai aparecer e sabe Deus o que ele vai fazer quando voltar. Vocês têm que ter alguma curiosidade, nem que seja apenas por autoproteção.

Seria necessário muito mais sol para poder derreter aquela pedra de gelo em especial.

- Temos coisas mais importantes com o que nos preocupar. – Disse Ellie, abaixando para acender o fogo.

- Ellie...

Se Naomi ainda era muito nova no grupo para conseguir entender como Ellie se torna perigosa quando é desafiada, no momento em que ela a encarou, incitando a terminar a frase, ela entendeu o risco que corria e se calou.

- Levou muito tempo para que livrássemos Kat da maldição - Ellie disse, esfregando a lenha com cuidado - E agora precisamos cuidar de outra de nós.

O uso de plural estava me incomodando.

- Eu tenho palavra, Ellie. – Eu disse, me levantando - Vamos encontrar Charlottie.

Ellie finalmente conseguiu produzir fogo.

- Não é disso que estou falando.

- Do que é então?

- Sophie vem passado por coisas estranhas depois do encontro com a Morte.

Coloquei-me de pé em um salto.

- Que tipo de coisas?

- Sonhos com memórias que ela tinha suprimido, alucinações quando ela passa muitos dias sem sangue.

- Por que ela não me disse isso?

- Ela não ia contar para ninguém. Quer que a busca por Charlottie seja a prioridade geral do grupo no momento. Percebi que ela estava aérea e quando perguntei o que havia de errado ela me contou, mas não sem algumas ameaças.

Esfreguei a têmpora antes de responder. Sophie está tendo alucinações por dois meses e escondeu isso do grupo inteiro. Quer dizer, todas nós percebemos seu silêncio em contraste com a personalidade amistosa e animada dela, mas depois do que aconteceu é óbvio que ela seria afetada. Só que eu sempre pensei que se Sophie enfrentasse algo como alucinações, ela contaria para todos. Somos um clã. Sem segredos.

De repente me dei conta de que de todas ali, Sophie era de quem se sabia menos. Ela nunca contou sobre a infância, sobre sua mãe abusiva, sobre o assassinato que cometeu quando ainda podia sentir remorso por isso e nem sobre Charlottie ou seu relacionamento com ela. Também nunca se abriu sobre o fato de não poder transformar vampiras. Sophie era a mais social e a mais tagarela e ao mesmo tempo a mais fechada do grupo. Sua lealdade é inegável, mas não entendo como ela pode esconder tanto de nós. Todas temos marcas escuras no passado, e no presente também, é o que faz de nós um clã.

Tudo que eu sabia era que precisava de uma longa conversa com ela.

As Crônicas de Kat - A História CompletaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora