24 - A vida não para

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Finalmente liberada do gesso na perna, Sara correu atrás de se atualizar nas matérias da faculdade. Angel sempre mandava seus resumos pra ela, mas nada valia mais do que receber a sabedoria vinda diretamente de seus professores. Então combinou com eles pequenas sessões de dez minutos após as aulas, nas quais poderia tirar dúvidas.

Além disso, ligou pra Supernova, a empresa onde fazia estágio, e pediu para voltar uma semana antes do fim de suas férias.

- Mas a chefe nem está aqui, e você é assistente direta dela...

- Não importa, eu posso aprender outras coisas com vocês, além de reorganizar a sala dela, os arquivos, a agenda, o mural de referências... Ela não vive reclamando disso? Quando chegar, terá uma surpresa.

Com tudo combinado, inclusive os parâmetros administrativos, nossa mocinha estava, após a aula, de volta à labuta e longe, como desejava, muito longe de pensar naquele lá.

Sua mãe sem dúvidas aprovava a decisão, pois nunca vira Sara tão amargurada antes na vida. Um dia, antes da retirada do gesso da filha, Tânia, negra e parruda de aparência severa, mas temperamento doce, cabelos pretos e cacheados sempre presos em um coque alto, olhou bem firme para a filha com seus olhos castanhos escuros e se pronunciou:

- O futuro sempre foi cristalino para você, filha. Tanto talento, tanta garra e dedicação... E agora está ofuscando a si mesma por conta de um rapaz que mal conhece... Mamãe sabe das esparrelas do amor, e o quanto ele pode nos abalar, mas cabeça pra cima, queixo pra frente! Chore no travesseiro e acorde nova e pronta para o mundo que você merece. Até que o choro não seja mais necessário.

Sua mãe sabia mesmo das coisas, porque depois deste conselho, Sara mudou de atitude da noite para o dia e voltou a ser aquele raio de luz na vida das pessoas.

Estudar e trabalhar era maravilhoso, nem trocava mais de estação quando o rádio ou o aplicativo de música começava a tocar K-pop, entendendo que aquilo fazia parte dela, e não dele. E ele que se lascasse, com a sua insensatez e seu gosto musical obscuro, ela era uma pessoa pra cima, e nada melhor do que músicas, clipes e cores que enaltecessem isso. Ai, que saudades da bolsa de melancia... Não pense nisso, não pense nisso, não pense nisso.


Com os três estagiando, seu tempo com os gêmeos se limitou aos papos no intervalo das aulas, às trocas de mensagens, e aos finais de semana, em que se reuniam para estudar em uma mesma sala, geralmente na da casa de Sara, que tinha mais tranquilidade (os pais dos gêmeos viviam brigando, pelas mais variadas razões, fosse o destino dos filhos após a faculdade ou a maneira correta de se falar o nome do Van Gogh). Com o ano letivo terminando e as provas finais batendo à porta, nenhum dos três pensava em cinema, barzinhos ou baladas, mas Tânia sempre dava uma animada no trio ao transformar a sala em ambientes temáticos e oferecer a eles drinks sem álcool.

Jo-Jo se sentia meio só, porque não tinha com quem dividir suas dúvidas ou epifanias acadêmicas com ninguém ali, mas preferia isso ao grupo de estudos maçante que tinha se formado na faculdade. Ele queria ser alguém que fizesse a diferença no mundo, mas sem ser massacrado por tanta mediocridade.

Na Real Tech, ele estava absorto em trabalhos simples, porém importantes, como ler e digitar memorandos, pois era sempre um dos primeiros a saber o que se passava naquela organização. Talvez por ser sobrinho da namorada do chefe, ninguém ali o explorasse como faziam com Filippo, que continuava a servir café e aguentar gracinhas do pessoal do T.I., o que vinha lhe irritando cada vez mais ultimamente. Não fosse a necessidade de seu diploma e o comprometimento com a empresa que lhe dera esta chance, ele já teria chutado o balde, mas respirava fundo e mentalizava a formatura, que estava a dias dali.

Chamado novamente à sala de reuniões, desta vez sem um grupo de pessoas desconhecidas e confusas, encontrou Braga, o supervisor, Cibele, do RH, e Freitas, que exibia um sorriso tão grande no rosto que poderia estar ali colado, como uma insígnia.

- Bem, Filippo, como você sabe, a empresa está em processo de mudanças, aperfeiçoamento, como prefere dizer o doutor Régis, e isso não é só aqui em Nova Antares, vem da matriz, lá em São Paulo, para as mais de 20 filiais pelo Sudeste. Pudemos contar com sua ajuda com o processo de promoção do Freitas aqui...

-...Gerente de vendas? – Filippo não pôde se conter.

- Não, subgerente, decidiram por este cargo pra eu me adaptar e também começar os meus estudos no ano que vem. Conseguiram uma bolsa parcial na faculdade da família da namorada do doutor Régis; se eu for sempre um bom exemplo aqui e tirar boas notas lá... me formo pela metade do preço e ainda posso abater as matérias básicas que estudei quando fiz Administração.

- Parabéns, cara, e quem vai ser o gerente?

- Ainda não o conhecemos – desta vez foi Cibele quem se pronunciou –, virá de São Paulo. E é por isso que chamamos você aqui. Como teremos o Freitas pra realmente gerir as vendas, apesar de tutorado pelo Raphael, que será um gerente geral, ele vai aproveitar pra analisar o trabalho dos estagiários. E você já está se formando, certo? Logo poderemos realocá-lo diretamente para o setor de T.I., ou você se afeiçoou muito por vendas? Temos um cargo para atender diretamente ao público, vendendo e consertando produtos de informática e tecnologia, o que lhe daria uma comissão além do salário, mas tudo vai depender da sua vontade e da análise do Raphael. A equipe de T.I. não soube dizer muito sobre você, e eu suspeito que seja porque eles não te dão muitas oportunidades lá dentro, não é mesmo?

- É... Então... – começou Filippo.

- Ah, fala a verdade! – Freitas tomou a frente. – Eles são uns exploradores! Colocam meu parceiro aqui pra fazer somente o que não gostam, o que inclui servir café pra todos eles e responder e-mails dos clientes insatisfeitos, mas não ensinam, muito menos aceitam ajuda, e o garoto tem potencial, faz muitos trabalhos por fora há anos, não só pra conhecidos e...

- Ok! – finalizou Braga. – Você, como subgerente, vai poder reportar isso diretamente para o Raphael, mas quero que Filippo fale, está bem? Acabou a era de ser gentil, meu amigo, você precisa lutar pelo seu emprego aqui, porque doutor Régis só acredita em relatórios, e quem vai fazê-los a partir de agora será esse novo gerente que não te conhece.

- Mas e o senhor, sendo supervisor, não pode endossar a questão? – Filippo arriscou.

- Eu agora serei responsável por várias lojas, estarei mais no escritório central do que circulando entre elas, mas sempre viajando, e precisarei acreditar no que dizem os meus gerentes e subgerentes, entende? Conheço você, é um bom rapaz, e vou lutar por seu emprego, mas preciso que você também lute.

O ruivo sentiu umaperto no peito.

Jogo de confiançaWhere stories live. Discover now