11 - Um Dilema

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A manhã de Filippo passou como bala. A caminho do trabalho, procurou, esperançoso, por Sara no ônibus, mas sabia que não teria essa sorte – no dia anterior saíra atrasado, o que não era costume seu. Freud, se vivo estivesse, o chamaria de ansioso, porque chegava sempre antes do horário em seus compromissos; mas Filippo dizia que apenas não gostava de fazer ninguém esperar por ele. Mais um ensinamento de sua mãe.

Mandou então a tal mensagem pra Sara, e recebeu um sorrisinho envergonhado como resposta. Era pouco, em comparação à vontade que ele estava dela, mas Filippo era compreensivo quanto a isso: o sítio dos sentimentos é particular e intocável. Se já não era capaz de mandar nos seus, imagine tentar manipular o de outrem. E, sendo sincero consigo, não poderia esperar muito de quem acabara de conhecer. Mesmo que os beijos da noite anterior tenham sido de outro mundo.

Não era possível que tenha passado por aquilo tudo sozinho, foram sensações muito intensas, mas cada um tem um modo próprio de reagir às vivências. O dela era sorrir envergonhada, pronto. "Contente-se com o fato de que ela respondeu a sua mensagem", concluiu, sensato.

Atravessou a manhã de trabalho sem se importar com dificuldades – aliás, será que elas existiam? – e sem se demorar em atividades. Como eu disse, a manhã passou como bala. Conhecer Sara definitivamente fora uma bênção, que sorte ter se atrasado. E ele nem acreditava em sorte, mas sim em esforço. Ô mulher pra fazê-lo questionar os conceitos de uma vida em tão pouco tempo!

Estava feliz demais. Tendo vencido a ansiedade do dia anterior com a chuva de serotonina, dopamina e ocitocina provocadas pela noite com Sara, seu trabalho rendia, e sua vontade de socializar com os clientes surpreendeu colegas de trabalho, o gerente, e o Freitas, que fez questão de sair pra almoçar com o amigo e investigar a causa disso tudo.

- Fala, meu camarada, o que está acontecendo? Você está diferente. Alegre. Não que isso seja ruim, mas ambos sabemos que o mister simpatia da dupla sou eu.

- Quer uma faixa e uma coroa? – Ironizou Filippo.

- Quem sabe outra hora. Agora gostaria que você fosse franco comigo. Seu amigo. Seu melhor amigo. Parceiro. Irmão. Que diabo de foda boa é essa que rolou no seu final de semana e você não me contou?

- Não rolou foda nenhuma. – Respondeu, reforçando a entonação na ação.

- Ah, desculpe. Qual foi do amorzinho gostoso que você andou fazendo? – Destacou a expressão, demonstrando o seu repúdio pelos nomes piegas que os casais costumam dar ao nobre ato sexual.

- Nem foda, nem amorzinho gostoso, cara. Não aconteceu nada demais.

- Opa, se não foi nada demais, é porque ao menos alguma coisa aconteceu. Quem é a gata? Por que eu ainda não soube nada dela? Tem peitão? Se bem que você é mais um cara de bunda, né...

- Porra, Pietro...

- Lá vem ele me ofender com esse nome. O que foi que eu fiz pra merecer isso?

- Você sempre faz isso. Objetifica as mulheres.

- Fodeu. Tá apaixonado.

- Não disse isso. E nem precisava. Você sabe que discordo. Não é possível que viva num mundo onde consegue separar as relações com sua irmã, mãe e amigas do modo que trata as peguetes.

- Não as trato mal. Esse é só o nosso papo de brother.

- Mas o que você pensaria se um dia descobrisse que ao seu lado sou parceiro e à distância falo canalhices a seu respeito? Manteria a sua confiança em mim? Ou se sentiria humilhado, desrespeitado, usado?

Freitas ficou calado. Preferiu dar uma golada longa em seu suco. Entretanto, seu desconforto era visível. Não tinha um argumento que não soasse infantil ou machista. E ele achava que não era nenhuma das duas coisas.

Filippo sustentou o silêncio, aproveitando bem a sua carne assada com batatas, na marmita organizada excepcionalmente pela dona Marilda na noite anterior.

Quando a situação ficou realmente incômoda, e sabendo que naquele momento não haveria piada para lhe salvar, Freitas colocou o orgulho de lado, e declarou:

- Desculpe-me. Não queria te chatear. Não queria também ofender qualquer mulher. Eu devo ser um grande idiota mesmo.

- Algumas vezes você é.

Freitas suspendeu as sobrancelhas e arregalou os olhos, injuriado.

- Enfim – continuou Filippo –, não que você mereça saber, mas ontem eu conheci uma garota incrível.

- Como assim ontem, se você já estava todo serelepe quando chegou no trabalho?

- Ah, ela estava no Vila Nova, o ônibus que pego pra vir pra cá.

- Hum... E aí? – Freitas evitou usar muitas palavras, pra não levar um novo sermão.

- E aí que ela é linda, engraçada, criativa, meio maluca...

- Adoro as meio malucas – interrompeu o amigo, sem se conter – elas são boas de...

- Cara!

- Ok, ok... Não darei opiniões...

- Você pode opinar. É só não exagerar na expressão das suas, digamos, emoções.

- Tá, vou melhorar nisso.

- Então... À noite acabamos pegando um cineminha...

- E aí rolou a pegação. Opa, posso falar em pegação, né?

- Pode, seu incauto.

- E posso perguntar como foi, ou também é ofensivo?

- Pode perguntar, mas provavelmente não obterá a resposta que busca.

- Por quê? Agora sou muito obtuso pra saber os detalhes picantes?

- Acho que você está muito ofendido com o fato de que eu discordo do seu trato com as mulheres. Eu sempre fui assim, nada mudou.

- E eu sempre agi desse jeito, mas você parece não aceitar meu bom humor.

- Não posso considerar humor esse modo de se referir a mulheres.

- Eu não ofendi ninguém! Cara! É isso? Nós vamos brigar? Por conta de mulher?

- E mulher não é razão suficiente pra se travar uma discussão?

- Você está distorcendo as minhas palavras.

- E você, amargando o meu dia, que tinha começado tão bem.

Freitas se levantou e saiu do refeitório, sem terminar de comer ou olhar pra trás. Filippo ficou sozinho com seus pensamentos. Quando poderia imaginar que sua amizade com Freitas sofreria um abalo? É claro que já brigaram antes, são muitos anos de amizade, mas nunca por questões tão sérias quanto julgamentos de caráter. Será que ele realmente distorcera as palavras do amigo e exagerara na dose? Revia tudo mentalmente; talvez fosse bom conversar sobre isso com sua mãe ou dona Iolanda, mas naquela hora só poderia achar que estava certo. Estava defendendo aquilo que aprendera com dona Marilda, afinal.

Então seu celular vibrou, e ele voltou sua mente para um mundo sem problemas. Recebera uma mensagem de Sara, que dizia: "beijo bom, quero mais".

Jogo de confiançaWhere stories live. Discover now