Jogo de confiança

06 - Fibra Moral

Sem saber como conseguira, Filippo passou o dia se esquivando das incertas do amigo Freitas, que continuava a atazaná-lo sobre suas "investidas suspeitas às nádegas", mesmo após ele já ter conseguido controlar o impulso de sentir o cartão com o número de Sara no bolso.

Aquele três de outubro se tornara um dia feliz. Encantado com Sara, empolgado com a ligação que já viria, ele estava imune às implicâncias do amigo e a reclamações de clientes, o que incluía uma senhora que foi ao gerente declarar que o rapaz só poderia ser um debochado, porque sorria demais.

Era estranho se sentir assim por causa de alguém com quem só trocara meia dúzia de palavras, e gaguejadas ainda por cima, mas aquele encontro tinha mudado alguma coisa dentro dele. O conceito de que amor à primeira vista era coisa de novela poderia vir a ruir, já que seu coração batia descompassado toda vez que pensava nela, o que também era um ato involuntário e fazia um bem enorme a alguém que levava a vida tão a sério quanto ele.

Não que Filippo fosse alguém carrancudo, pelo contrário, ele tinha um sorriso doce e fé no futuro, porém sua relação com o passado e o presente não poderia ser considerada como fácil e tranquila. Não era como o Freitas, que trabalhava pra bancar os próprios luxos, como saídas com garotas, roupas e perfumes que o permitiam sair novamente com elas; Filippo era bolsista em uma universidade particular de prestígio, a UBM, mas apesar de não precisar pagar mensalidades, o salário que recebia na Real Tech servia para cobrir seus gastos estudantis, como fotocópias e livros, passagens de ônibus e ajudar a pagar uma ou outra conta em casa. Sua mãe, porém, insistia para que ele guardasse dinheiro para si, e vivesse um pouco da juventude, pois "o amanhã é uma incerteza", dizia sabiamente.

Ele cursava Tecnologia da Informação à noite nos últimos seis anos, como já se sabe, e estava em vias de se formar. Escolhera demorar mais tempo do que os tradicionais quatro anos de graduação para que pudesse se dedicar tanto aos estudos quanto ao trabalho, cursando menos matérias por vez, à medida em que ficavam mais difíceis. Este era o semestre do famoso e temido TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), para o qual recebia orientação de um professor, e de duas matérias eletivas (optara por Desenho de Observação e Empreendedorismo), então suas noites de segunda, quarta e quinta estavam mais livres, contudo era ilusão pensar que ele parava para descansar.

Com uma mãe adoentada, um pai ausente e pouco dinheiro, Filippo utilizava seu tempo livre fazendo manutenção nos computadores da vizinhança e de algumas outras pessoas indicadas por amigos, além de encaixar workshops de Programação em sua agenda.

- Você é jovem demais pra ser tão responsável, filho, aproveite a vida! – dizia a sua mãe, dona Marilda.

- Eu considero aproveitar a vida fazer o melhor que posso por mim e pelos meus. Permitir que você trabalhe menos e tenha uma vida digna é uma honra e me faz feliz. – Respondia ele, fazendo a humilde senhora se emocionar.

Fora uma gravidez tardia a de dona Marilda, camareira de hotel. Há 23 anos, a morena jambo de cabelos pretos e brilhosos cuidados com henê conhecera um hóspede irlandês chamado Liam e nove meses depois nascera Filippo, cópia perfeita do pai, para lembrá-la de sua momentânea imprudência e impulsividade, e ajudá-la a criar o filho como um perfeito cavalheiro. Ao grande amor de sua vida, Filippo, ensinou a respeitar as mulheres e a ser batalhador, fazendo-o entender, desde cedo, o valor de uma conquista obtida através do esforço.

Voltando ao Brasil nos anos seguintes, Liam descobriu que era pai e se prontificou a ajudar – sim, a palavra é esta – na criação de seu filho, enviando à Marilda valores irrisórios a cada mês e patéticos presentes não solicitados no Natal, junto a cartões natalinos produzidos com fotos de sua família. Assim, Filippo sabia que tinha uma madrasta e dois irmãos mais novos, Gael e Kira, com quem jamais conversara, mas ultimamente andava pensando em procurar no Facebook.