02 - Ônibus não é boate

146 28 205
                                    

- Mas, amiga, que ônibus mais badalado foi esse? – Perguntou a morena tatuada Angélica na hora do intervalo, após ouvir o relato de Sara sobre o seu trajeto para a universidade.

- Amada, ônibus não é boate! – Divertiu-se Jonas, o irmão gêmeo de Angel, que não cursava Design, como elas, mas frequentava o mesmo campus, como estudante de Direito. Ele jogou os seus cabelos altamente descoloridos (o que os pais achavam um despropósito) para trás e piscou para Sara com seu par de raros olhos acinzentados.

- Pois me pareceu melhor do que qualquer casa noturna. Você analisa as pessoas sem luzes de efeito, visuais trabalhados e o som alto que rouba metade das conversas. – Sara declarou, entre mordidas que dava em seu sanduíche natural.

- Contando que a conversa que você mais queria que acontecesse foi a única que não conseguiu ter... – Provocou a amiga, girando um canudo reutilizável entre os dedos.

- Mas terei, Angel, o ruivinho vai me ligar mais tarde.

- Será que vai? – Angélica rebateu.

- Em terra de smartphone, ligação é prova de amor... Será que você quer isso tão cedo, linda? – Jonas sabiamente questionou.

- Ai, vocês dois! Uma coloca em dúvida o meu poder de atração, o outro transforma em prova de amor um princípio de paquera... Posso saber por que em vez de me shippar com o maravilhoso do 247 vocês parecem jogar um balde de água fria no meu dia que começou tão bem, que chega a ser irreal?

- Um: porque a gente te ama; dois: ainda não conhecemos o boy; três: não queremos te ver magoada ao criar expectativas; e, resposta bônus: porque implicar com você e te ver nervosinha a ponto de discursar de pé é espetacular. Sente-se, amiga.

- E agora quer mandar em minhas posições? Ficarei de pé, obrigada, Jo-Jo. – Encarou-o, apoiando as mãos sobre a mesa de plástico branca.

- Depois eu é que sou o rebelde. – Respondeu Jonas, fazendo Sara revirar os olhos e Angélica voltar à discussão:

- Oras, maninho, e sua rebeldia não é do que você mais se orgulha?

- Apenas se você considerar que não se sentir bem encaixado neste mundo doente é sinal de saúde.

- Uau, hoje você está arrasando nas frases de efeito!

- Sou dez, querida irmã.

Deslocada do assunto, Sara fez um muxoxo e virou as costas, indo em direção à escadaria de pedra que levava ao prédio de atividades criativas, criando um clima de tensão entre os dois amigos.

- Eta, será que exageramos, irmão?

- Claro que não, sua linda, não está cansada de saber que Sarita deveria cursar Artes Cênicas, de tão atriz que é? Não fizemos nada além de protegê-la de si mesma, iluminando-a com a razão.

- Mas vai que essa foi a gota d'água de uma sucessão de comentários nossos no último bimestre? Depois de tudo o que ela passou, talvez devêssemos ser mais sensíveis!

- Ok, amada, corra lá atrás dela, mas eu ainda acho que clima de velório não vai funcionar com a nossa Sarita. Ela encara a realidade como ninguém, e supera os reveses melhor do que qualquer um de nós.

Ao chegar esbaforida na sala de aula, Angélica não encontrou a amiga, e concluiu que algo estava mesmo errado. Sentiu-se culpada, pela primeira vez em quase quatro anos de amizade. Não dá pra medir a dor alheia, muito menos imaginá-la, se o outro não souber compartilhar, então não tinha ideia de onde frear suas brincadeiras; não machucaria ninguém de propósito, muito menos Sara, mas a culpa funciona assim, como a chuva de verão que chega sem avisar e destrói toda construção sem bases sólidas.

Dez minutos depois de iniciada a aula, para a surpresa de Angel, Sara entrou na sala, com um papel em mãos, que entregou à professora, e se sentou em uma carteira perto da porta, como quem desejasse sair. As duas amigas se sentam próximas desde o primeiro período da faculdade e, com o diferente acontecendo, a morena ficou ainda mais perturbada. Sara, porém, carregava um sorrisinho quase imperceptível no rosto, como uma criança que acaba de pregar uma peça em alguém.

Jogo de confiançaWhere stories live. Discover now