14 - Reunião incomum

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A sala de reunião estava cheia. Alguns rostos conhecidos, como o do chefe, doutor Régis, um loiro cujo bigode o fazia rir, pois lembrava uma morsa; Cibele, do RH, de pele tão preta que brilhava; o supervisor Braga e a dupla de engravatados com a qual muitas vezes esbarrava no refeitório. Freitas sempre dizia que eles eram contratados pela sua incapacidade de rir, devia fazer parte da função.

Outros rostos, como o de Martha, eram completamente novos, e ele contou cinco, sete, dez cabeças.

Respirou, aliviado. Aquela reunião, com membros de tantos setores da empresa, poderia até não significar algo de bom, mas com certeza precisaria ter explodido uma bomba no banheiro ou roubado o caixa para se sentir ameaçado. A menos que alguém... Não, por favor, fique calmo, ou ao menos transpareça calma, você é um cara tranquilo, pensou.

- Bom dia, Filippo! Está bem, espero? – Cibele do RH quebrou o gelo. – Por favor, sente-se!

- Ah, sim! Muito bem, obrigado! Bom dia a todos! – respondeu ao se sentar em uma desconfortável cadeira cinza.

- Ótimo, ótimo. – Declarou o doutor Régis, que não fizera doutorado, e portanto não se sabia o porquê da alcunha. Mania de endeusar patrões, esta do brasileiro. – Então, Filippo, como você sabe, estamos em momento de transição na empresa e...

- Não, doutor, ele não sabe! – Interrompeu o Braga.

- Desculpe... Não é esse o gerente de vendas?

- Doutor Régis, se me permitir falar – Continuou Cibele, sem esperar permissão –, Filippo é um dos nossos funcionários mais antigos, e apesar da pouca idade, tem um desempenho muito bom nas vendas...

- Então é ele quem vai substituir o gerente? Ah, sim! Parabéns, meu jovem...

- Não, doutor, por favor... Esse não é o objetivo do rapaz, a menos que eu esteja enganada. Filippo quer seguir carreira na área de T.I., e faz estágio parcial em nosso setor de manutenção de computadores até se formar. Depois disso, teremos muito o que conversar...

Filippo sorriu por dentro, mas estava tão perdido naquela conversa quanto o seu chefe.

- Percebo que o rapaz tem qualidades, mas o que o traz aqui, então?

E, desta vez, foi o Braga quem falou:

- Ele veio dar seu testemunho acerca do Freitas, outro de nossos vendedores.

- Eu? – Filippo se surpreendeu questionando.

- Espero que esse Freitas seja o futuro gerente de vendas, então? Eu não posso perder o meu tempo com declarações de bom desempenho, por mais que os funcionários mereçam reconhecimento. É pra isso que temos o nosso setor de RH com a Gisele representando Nova Antares...

- Cibele.

Braga queria explodir. O chefe passara a última hora em reunião com toda aquela equipe e parecia não ter absorvido nada. Era normal ele estar sempre ao celular, mas tinha algo de diferente nos sorrisos que trocava com o aparelho a cada mensagem recebida. Assim como o tempo de Régis era precioso, o de todos os outros também era. Respirou:

- Chefe, doutor, deixe-me falar com o nosso convidado. – E se dirigiu a Filippo:

- Filippo, esta é uma reunião incomum. Sei que em todos estes anos de empresa você jamais participou de algo assim, em geral vem aqui na sala para treinamentos, mas hoje precisamos de sua expertise, de seu conhecimento acerca do Freitas. Sabemos que são bons amigos e isso vai nos ajudar muito.

- Desculpe-me a ousadia – começou Filippo –, mas ele está na loja. Por que não o chamam para defender a própria causa?

- Viu? Sempre elegante! – Cibele falou baixinho ao ouvido de uma engravatada, o que chamou a atenção de todos e deixou Filippo ruborizado.

- Calma, meu amigo – continuou Braga –, você está num ambiente positivo e seguro, e foi chamado aqui por sua discrição e lealdade. Como doutor Régis mencionou, estamos em período de transição na Real Tech, e você já entendeu que uma das mudanças é em nossa equipe de vendas. Não é de nosso costume ter um gerente tão novo, mas seria maravilhoso ter à frente de nossa equipe alguém com tantos anos de casa e que aprendeu tudo o que sabe conosco. Nossa única questão é entender as ambições do Freitas. Será que você, como amigo, poderia nos elucidar?

- Novamente digo, seria melhor conversar com o ele. Nós somos muito amigos, sim, mas não tenho conhecimento de tudo o que se passa em sua mente, posso dar uma impressão errada.

- Obrigada, Filippo – continuou Cibele –, mas conhecemos o Freitas. Sabemos de seu potencial para vendas e para encantar o público, e entendemos inclusive o quanto ele está acomodado com a posição atual. Queremos que ele cresça na empresa, mas de nada vai adiantar um avanço em quem não sabe o que quer. É muito mais fácil ser gerenciado. A realidade é que viemos pedir a sua ajuda. Precisamos direcionar seu amigo para algum lugar. Seja para gerência de vendas, ou para a área de Comunicação... Diga-me: você é capaz de ver o Freitas numa faculdade? Cursando Relações Públicas, por exemplo?

- Sim, vejo... – Filippo respondeu, visivelmente incomodado.

- Freitas tem bastante potencial – balançou-se Braga – e você, como amigo, vai nos ajudar bastante. Nos próximos dias ele entrará em uma sabatina com a Cibele, e vamos direcionar esta carreira. Queremos ele conosco. E você também, claro! Mas cada coisa a seu tempo. Converse com ele casualmente sobre interesses profissionais, mas sem mencionar a promoção, certo? Obrigado pela colaboração. Já pode se retirar.

Filippo saiu da sala atordoado, sem entender a que horas concordara em ajudar seus chefes a mudar a mente festeira de Freitas e fazê-lo se decidir por um rumo na vida, e foi beber um gole de água.

Freitas apareceu, silencioso, a seu lado:

- Levou uma prensa, irmão?

- Ah, voltei a ser irmão?

- Desculpe, só quis ser solidário. Sua cara não está nada boa, mas se incomodo...

- Não, não incomoda. Eles estão sondando os funcionários para um projeto novo. Você também será chamado. E já que está aqui, escuta, naquele dia, eu não fui capaz de entender o seu lado e...

- Desculpe, meu smartwatch vibrou. Com certeza tem alguém que ainda não entendeu como funcionam as caixas de som bluetooth.

Freitas se retirou, e Filippo voltou devagar para o salão, para dar tempo ao amigo de fingir que tinha mesmo sido chamado para alguma consulta.

Mas a tentativa de pacificação não estava perdida. Freitas se preocupara e o chamara de "irmão". Muito em breve essa contenda estaria resolvida, era visível.

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