19 - Transcendental

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Nossa, uma batida de carro. Se Sara ficou desacordada, não foi nada simples, e ele preocupado com um suposto preconceito social da garota de classe média com quem há poucas horas tivera uma experiência carnal tão profunda que chegou a preencher um vazio que nem desconfiava ter.

Sentiu-se pequeno.

Idiota.

Limitado.

Não sabia como explicar tudo isso a Freitas, mas como carregar tanta angústia sozinho? Amigos são como curandeiros para as nossas dores. Seu tratamento pode até não ser comprovado, mas causam alívio, isso é fato.

E se sentaram para almoçar no quarto dele, reduto de miniaturas e pôsteres de carros, porque a conversa não podia esperar.

Filippo resumiu ao amigo toda a história, desde que se conheceram no ônibus, mas sem detalhes íntimos, e tentando explicar a rápida conexão entre Sara e ele, que ia além do tátil.

- Você então está me dizendo que o contato físico entre os dois provoca sensações quase espirituais?

- Sim, é diferente de tudo o que já vivi! Desde o primeiro beijo, a sensação de estar com ela é de ter vivido uma vida realizada. Não tem explicação. Ela é incrível, jamais pensei que teria tanta sorte no amor.

E, nesse momento, Penélope bateu a porta do próprio quarto.

- Amor?

- Ah, cara, se isso que tenho vivido não é o que dizem os poetas, então ainda precisa ser rotulado.

- Foda transcendental, já falei, vou até patentear.

- Parece que você não me entendeu, não é só físico.

- Ou você é que não percebeu que eu sei do que você está falando. Já peguei uma mina que, se não tivesse fugido aqui de casa na manhã seguinte, sem nem se despedir, eu poderia até pensar em namorar.

- Você, que não se compromete com nada, namorando?

- Eu me comprometo com o meu prazer, não há melhor maneira de ser feliz. Mas não estamos falando de mim, você ainda não explicou por que está com essa cara de fim de festa. A mina tá bem, só quebrou uns ossos.

- Eu ainda não sei como foi o acidente; e se algo grave tivesse acontecido enquanto eu estava ocupado em achar que ela tinha fugido do cara que mora em comunidade carente?

- Irmão, você não foi o causador da batida de carro. Nem álcool levou para o encontro, não pode se responsabilizar pelo acontecido.

- Não estou me responsabilizando pelo acidente, mas pela forma como me senti quando ela não deu notícias. Meu primeiro ato, como já disse, foi pensar que ela agira com preconceito.

- Bem, você já viveu isso mais de uma vez... Eu lembro daquela sardentinha que ficou com você na festa de fim de ano do curso de inglês e depois espalhou até boato sobre os seus hábitos e companhias, até eu fui envolvido... E tem aquela sua ex, como era o nome dela? Enfim, não importa, você já sofreu preconceito e bullying por morar ali, é normal se preocupar com padrões que podem se repetir.

- Não, não é normal. A gente não pode entrar em um relacionamento esperando viver as mesmas coisas de um anterior, mesmo que tenham sido boas. Tenho que trabalhar meus traumas, mas como se faz isso sem grana e tempo pra terapia?

Sem respostas, Freitas tentou animar o amigo com música, que tocava em sua guitarra vermelha, enquanto o outro batucava na escrivaninha de cerejeira; porém, a tarde desceu e Filippo lembrou novamente de suas metas e responsabilidades, agradeceu o apoio e correu para casa.

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