PARTE 1: O Sangue de Artenis 01 (Artenis)

103 8 3
                                    

Visita Noturna

Aconteceu no início do ano, numa noite chuvosa de janeiro. Minha mãe saíra para fazer compras no mercado, e eu fiquei em casa assistindo a TV. A notícia de um incêndio num orfanato da região, algo que chocara toda a cidade em que eu vivia, Nascente, estava sendo transmitida mais uma vez pelo noticiário local após ter sido repetida à exaustão.

Foi quando, se sobrepondo ao som das gotas da chuva caindo lá fora, ouvi a campainha tocar.

Eu sabia que minha mãe não tocaria a campainha de sua própria casa; ela levara as chaves consigo, deixando apenas uma cópia para mim. Caso ela tivesse esquecido as chaves ou algo assim, com certeza me chamaria aos gritos — foi o que aconteceu uma vez.

Então quem poderia ser a uma hora dessas?

E foi me perguntando isso que me levantei do chão da sala e desanimadamente caminhei até a porta. Curioso, dei uma olhada no olho mágico antes de falar alguma coisa, e a visão que tive me surpreendeu.

Era a silhueta do que parecia ser uma garota vestindo capuz, um moletom e calça jeans. Eu não podia ver seu rosto devido à escuridão lá fora e o capuz, e, na verdade, só podia dizer que era uma garota pelas curvas do seu corpo. Ela estava de pé parada em frente à porta, parecendo não se importar com a chuva que caía sobre si, deixando suas roupas encharcadas.

O que ela quer aqui a essa hora? Será que ela precisa de ajuda?

Não, pode ser que ela seja uma criminosa ou algo do tipo, não se pode ser tão ingênuo no país em que vivemos.

Procurando sanar essas dúvidas, eu perguntei:

— Quem é?

— Favor... deixe... entrar... — murmurou uma voz baixa e feminina do outro lado da porta. Essas foram as únicas palavras que consegui escutar, o restante foi abafado pelo barulho da chuva.

— O quê?

— P-por favor... Me deixe entrar... — repetiu ela, em um tom mais alto e claro.

Ah, então parece que é o segundo caso.

Mesmo assim, não posso baixar minha guarda.

— O-o que você quer? — questionei.

— Água... Estou com sede.

— Ah, d-deixa que eu pego pra você — ofereci.

— N-não...! Está frio aqui fora... Por favor, me deixe entrar — insistiu ela.

Fiquei em silêncio durante alguns segundos, ponderando sobre qual resposta seria mais adequada a ser dada naquele momento. Mesmo que ela estivesse falando a verdade, eu não podia confiar numa estranha que surge de repente na porta da minha casa no meio de uma chuva dessas tão facilmente. Ela pode ter segundas intenções, afinal, este é um país perigoso.

Por outro lado, parecia mesmo fazer frio lá fora, sem falar que ela podia pegar um resfriado se permanecesse naquela chuva. Para se submeter a isso, talvez ela tenha se perdido, talvez estivesse viajando e acabou ficando sem meios para se locomover ou algo assim. Diabos, ela podia ter andado por quarteirões em busca de alguém que lhe desse um mísero copo d'água.

Acho que não posso deixar uma garota morrer de sede e frio na rua...

Caso eu visse uma notícia na TV no dia seguinte sobre o corpo de uma garota morta por desidratação ou algo pior que foi encontrado jogado como lixo em alguma caçada por aí, certamente me sentiria culpado pelo resto da minha vida.

Considerando tudo isso, respirei fundo e respondi:

— Tudo bem, pode entrar.

E então abri a porta.

Dela entrou uma garota quase da minha altura — ela realmente parecia estar com frio, pois suas mãos estavam pálidas, quase brancas. Ainda não podia ver bem o seu rosto, pois o capuz atrapalhava bastante, e ela parecia evitar me olhar nos olhos, sempre olhando para baixo.

— Vem, a cozinha é pra cá — falei, me virando para caminhar até o dito cômodo.

Era um pouco perigoso deixar minhas costas abertas para um ataque dela, mas, naquele ponto, já não imaginava que ela fosse fazer isso, já teria tido a chance, afinal. Além disso, não queria deixá-la solta por aí.

Ela silenciosamente me seguiu, e, durante o trajeto, notei que a temperatura na casa baixara consideravelmente depois que abri a porta.

Tá fazendo frio mesmo lá fora, considerei.

Ao chegar à cozinha, abri a geladeira para retirar uma jarra d'água e, após derramar o conteúdo da jarra num copo de vidro, me virei para a garota para entregá-la o recipiente cheio.

— O-obrigada... — murmurou ela.

— De na...

Foi então que algo estalou em minha mente.

O choque foi tão grande que deixei o copo d'água escorregar de meus dedos e cair no chão, quebrando-se em inúmeros pedaços de vidro.

Infelizmente, eu demorara tempo demais para perceber, mas aquela voz suave e macia não poderia pertencer à outra pessoa, senão a ela...

— É você, Liza?!

— N-não... V-você deve estar me confundindo com outra pessoa...! — Ela tentou negar, recuando alguns passos de mim enquanto puxava seu capuz para obviamente esconder mais do seu rosto.

— Não, só pode ser você! O que aconteceu com você? — disse, agarrando suas mãos, estavam gélidas como as de um morto.

Ela fez um movimento brusco com a cabeça, tentando evitar me olhar nos olhos, mas acabou deixando seu capuz cair, assim revelando seu rosto.

Aqueles longos cabelos avermelhados, aquele rosto pálido de feições delicadas, aqueles olhos azuis... Eu tive certeza, aquela era mesmo ela, não haveria como eu a confundir com mais ninguém.

Ainda assim, ela continuava evitando me olhar nos olhos.

— É você mesmo! Liza, o que houve com você? Onde você tava?!

— Não! — gritou ela, violentamente soltando-se de minhas mãos e se afastando de mim. Logo levantou seu capuz novamente e disse:

— Eu não sou mais a Liza que você conhecia... Eu não pertenço mais a este mundo... Eu...

E, finalmente, eu entendi o significado de suas palavras — ou pelo menos achava ter entendido. A resposta não poderia ser mais cruel e óbvia.

— N-não pode ser... — Tentei negar, tentei resistir, contudo, a única conclusão a ser tirada daquela situação era aquela, a mais tenebrosa de todas.

— Eu só vim aqui para me despedir de você porque... eu sinto sua falta, eu sempre sentirei...

Nesse momento, vislumbrei uma fina lágrima escorregar sobre sua bochecha pálida e cair. Fiquei sem palavras, nunca tinha a visto naquele estado.

— Liza...

— Me desculpa...

E, com essas palavras, ela deu as costas para mim e simplesmente começou a correr. Tentei alcançá-la, mas quando cheguei ao lado de fora, ela já havia sumido feito fumaça em meio àquela chuva incessante.

Pode ser um começo nada explicativo e até mesmo decepcionante, mas foi assim que a minha história se iniciou, ou, pelo menos, é o início que sinto ser o mais adequado a ela. A história de como a minha vida normal e tediosa se transformou após um encontro fatídico com um peculiar grupo de pessoas.

Maldições de SangueOnde as histórias ganham vida. Descobre agora