Capítulo 39 - Berenice

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— Miguel, por favor, você não está vendo que a bolsa está aberta? — Berenice perguntou, ao sair do carro com Eloá nos braços, vendo o marido com dificuldades em sua única incumbência de levar a bolsa da filha deles em segurança até o hospital.

Mas ela não podia reclamar. Pela primeira vez, ela tinha seu marido sendo apenas homem, como era para ter sido desde o princípio. Com todas as suas falhas e limitações, mas, ao menos, humano. Tudo bem que poderia ter sido um homem mais hábil, mas ela podia conviver com aquilo.

Berenice ainda sentia o mesmo mal-estar ao entrar naquele lugar. E era óbvio que, para Miguel, estava sendo mil vezes mais difícil. Ele, que tivera que acompanhar uma a uma das esposas no sanatório, em algum momento do fim da vida delas, agora, mensalmente, ia até lá ver o pai. Não que ele conseguisse considerar Leonel assim.

Desde que ele, praticamente, matara o homem no jardim de sua casa, Leonel nunca mais foi o mesmo. Ele fora capaz de se recuperar fisicamente, mas acabara com danos cerebrais tão severos que, do dia para a noite, apresentou um quadro que os médicos diagnosticaram como a fase mais avançada do Mal de Alzheimer. E, pelo que Berenice julgou ser pela última vez, Miguel usou seu poder de persuasão para convencer a equipe médica de que uma pessoa normal desenvolver essa doença com tamanha rapidez era absolutamente aceitável.

Eles sabiam que poderiam tê-lo abandonado ali, pois o homem vivera apenas para destruir a vida das pessoas ao seu redor. Mas vê-lo tão envelhecido e frágil em uma cama de hospital, tão dependente e solitário, fez com que eles se propusessem a dar toda a assistência que ele precisasse. Até porque, querendo ou não, Leonel estava certo ao dizer que a fortuna que Miguel conquistara poderia ser atribuída aos seus serviços, ainda que tão malévolos.

Além disso, um homem tão perigoso devia ser monitorado de perto. Nunca se sabia quando ele poderia recobrar a memória e o que aquilo acarretaria.

Ambos se surpreenderam ao constatar a real idade de Leonel, sendo exposta em rugas e cabelos ralos esbranquiçados. O homem devia ter seus setenta anos, mas convencera o próprio corpo de que tinha a vitalidade, disposição e aparência de um rapaz trinta anos mais jovem. E vê-lo ali, com relativa saúde física, após ter sido espancado mortalmente por um homem dez vezes mais forte, mostrava que, de fato, o antigo lacaio havia convencido a mente a nunca morrer.

Durante a gravidez, Berenice insistiu em vir nos primeiros meses, para garantir que Leonel não despertaria, de repente, e começaria a manipular Miguel, trazendo todo aquele tormento de volta à vida deles. Mas, depois de algum tempo vendo que o homem mal falava e mal compreendia, Berenice permitiu que Miguel fosse vê-lo sem ela, com severas restrições para que essas visitas nunca fossem a sós e que ele passasse longe de qualquer resquício de água que pudesse estar ao alcance de Leonel.

Depois que Eloá nasceu, ela continuou em resguardo e só retornou às visitas mensais depois do sétimo mês de vida da filha. Tudo permanecia na mesma, e conseguiam voltar com relativa tranquilidade para casa, ao constatar que o antigo empregado passava bem.

Naquele dia, porém, Berenice começou a achar que algo não estava certo. Uma enfermeira pediu que aguardassem em uma salinha de espera, como já era de costume. Podia estar na hora do banho ou da administração de algum medicamento. Mas a enfermeira parecia um pouco tensa, e Berenice via uma agitação fora do normal ir tomando conta do ambiente.

— Se não tivéssemos que ter ido àquele casamento ridículo, podíamos ter vindo na semana passada e evitado todo esse sol — queixava-se Miguel, alheio ao que Berenice se atentava.

— Você sabe muito bem por que tínhamos que ir. Não vamos começar com essa história de novo, vamos? — ela perguntou, balançando Eloá, que estava inquieta em seus braços.

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