Capítulo 5 - Miguel

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Estava uma tarde muito quente para uma sexta-feira de agosto. A camisa branca de Miguel já estava grudando em sua pele, mas ele se recusava a trocá-la. Nunca vestia outros trajes que não fossem sociais durante a semana, mesmo num dia como aquele, em que só ficaria dentro de casa.

Ele estava de pé, com as mãos apoiadas na escrivaninha e Leonel bem próximo, apontando com uma unha suja o cálculo que fizera da receita daquele ano, em que não batia a entrada com as exorbitantes saídas.

Miguel sabia que Leonel costumava ser muito sistemático e até honesto demais quando se tratava de dinheiro, o que fazia com que confiasse nele para essas questões. Naquele momento, porém, queria que o homem fizesse vista grossa uma única vez na vida, fingindo aceitar o fato de que Miguel tinha recursos ilegais com mais naturalidade.

— Veja, senhor, por mais que se somem as entradas da empresa Américo com aquela doação exorbitante do final do ano, ainda assim, houve um gasto superior a dois milhões de reais que não é possível declarar.

Miguel suspirou, já não sabendo mais se por cansaço ou por aquele calor maldito. Tendo compreendido o ponto de Leonel, visto que ele mesmo não saberia ser tão cuidadoso com suas finanças, decidiu dar um fim àquela enfadonha reunião financeira e liberar ambos daquele escritório claustrofóbico.

— Ouça, Leonel, — chamou, olhando para os olhos do lacaio, este imediatamente hipnotizado — fico feliz que tenha dado tudo certo nessa declaração de imposto. Você, como sempre, fez um ótimo trabalho. Feche todas as contas e guarde os documentos.

Leonel assentiu uma vez.

— Ah, — lembrou-se, antes de desviar os olhos — e, por favor, limpe essas unhas. Sabe que aprecio muito o asseio.

— Sim, senhor — concordou Leonel, reunindo os papéis em cima da mesa, enquanto Miguel saía.

— Senhor, — soou uma voz tão logo a porta fora aberta, fazendo com que Miguel tivesse um sobressalto — tem uma pessoa lhe esperando.

— Quem? — perguntou ele, aturdido, sem nenhum palpite de quem viria lhe incomodar naquela tarde tão exaustiva.

— Uma senhora chamada Berenice. Ela o está aguardando no andar de baixo.

Miguel levou apenas um instante para se lembrar daquele belo rosto jovem que ele admirara há poucos dias, naquele mesmo corredor, por onde agora andava a passos largos. Já havia até se esquecido de que a tinha convidado para voltar à sua casa. Intimado, seria a palavra, mas aquilo não importava. O importante era que seu humor havia se transformado da água para o vinho com a ideia de revê-la.

Aproximou-se sem querer ser notado, após dispensar os empregados e pedir que ninguém os incomodasse. Viu novamente a mesma silhueta de costas do final de semana passado, mas agora com um interesse muito mais nobre do que se vingar da forma mais vil.

Quando Leonel viera lhe anunciar naquele dia que Gabrielle estava na festa, todos os músculos de Miguel se retesaram. Finalmente, se livraria daquela mulher detestável. Ele tinha mandado um recado a ela, dizendo que renunciaria à sociedade naquela ocasião. Achou que ela não acreditaria, mas, se ela tinha esperanças de realmente convencê-lo àquilo, não ir à festa junto com os sócios seria sua declaração de derrota.

Eles haviam combinado que Leonel avisaria sua chegada e a chamaria para o andar de cima para tratar desses negócios. Uma reunião primeiro a sós e, depois, com todos os sócios americanos era o que tinha sido prometido. A segunda parte, porém, nunca seria cumprida.

Miguel não fazia ideia da fisionomia de Gabrielle. Nunca precisara conhecer muito bem seus inimigos para vencê-los. Hoje, via que erro fatal foi negligenciar a importância de ter visto, ao menos uma vez, a foto dela. Assim, quando uma mulher alta de cabelos escuros surgisse sozinha no topo das escadas, após Leonel anunciar a presença de Gabrielle na festa, e começasse a olhar suas armas, como se estivesse aguardando alguém, não a atacaria sem dó, nem piedade. O que não podia imaginar era que uma moça entediada iria escolher justo aquele momento para fazer um tour em sua casa.

A moça agora estava com uma saia azul até os joelhos e uma blusa regata creme. Ela calçava um sapato preto de salto envernizado. Seus cabelos agora estavam romanticamente soltos, em contraste com o pequeno coque que usava na festa. Olhando bem, não estavam totalmente soltos. Uma fivela brilhosa despontou quando ela sentiu sua presença e decidiu virar-se, parando o mundo dele por um instante.

— Senhor Miguel, não o vi chegar — ela disse, com cautela. Não sabia muito bem o que fazia ali naquela casa outra vez. — Como vai?

— Miguel, por favor — ele respondeu, com um sorriso aberto. — Fico feliz que tenha aceito o meu convite.

Berenice assentiu, ainda muito desconfortável. Desde que o vira daquela vez, colocou em sua mente que tinha que vê-lo ainda naquela semana. Não se lembrava de nenhum convite formal da parte dele, apenas que deveria estar lá. Agora, porém, que estava, não tinha ideia do que fazer. Como aquilo era desconcertante.

— Não quer se sentar? Bebe alguma coisa? Um vinho, uma água, um chá?

— Não, na verdade eu... — ela começou, sentindo a garganta seca. Talvez, devesse mesmo aceitar alguma bebida, mas estava sozinha na casa de um homem desconhecido e, se não tivera o bom senso de declinar o convite, que tivesse ao menos o de não beber nada em sua casa. — Eu só passei para... Gostaria de vê-lo, agradecer por ter sido tão atencioso comigo na festa do... Na sua festa.

Miguel se aproximou rapidamente, parando no meio do caminho ao perceber a hesitação dela. Já tinha passado da hora de agir. Quisera conhecer o sabor dos lábios dela desde o momento em que ela estivera lívida em seus braços, após ser liberta da maldição que, por engano, ele lhe lançara. Então, por que ainda estavam ali, como dois estranhos, quando podia fazê-la se apaixonar e se entregar, como fizera com todas as esposas?

— Eu gostaria de dar um passeio com você pelo jardim. Existem muitos lugares interessantes na casa que você ainda não conheceu. E espero que você não tenha que se sentir sozinha para procurá-los.

Era para Berenice sorrir, mas ele conseguiu deixá-la ainda mais constrangida. Miguel não tinha tato algum com as pessoas. Nunca precisou ter. Sempre teve o que quis da forma mais fácil e vil, a única forma que conhecia: programando suas lembranças.

Ela o olhava com receio, buscando talvez rotas de fuga, ao invés de lugares para conhecer em sua grande casa.

— Por favor, — pediu ele a seus olhos, pela primeira vez naquele dia — me acompanhe nesse passeio. Quero conhecê-la, saber o que pensa, como se sente. Quero saber tudo sobre você.

Miguel não sabia, mas não precisava ter olhado nos olhos dela para pedir aquilo. Ela teria ido por livre e espontânea vontade para ser ouvida da forma que ele havia proposto. Ela, então, sorriu, corando mais um pouco, caminhando atrás dele quando, finalmente, ele a libertou daquele olhar mortal.

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*** Olha nós aqui de novo! Que prazer ter você acompanhando a minha história!

Berenice acabou aceitando o convite de Miguel por livre e espontânea pressão, mas acabou gostando bastante desse homem (e olha que ele nem usou seus poderes para isso...).

Miguel nem se fala, já caidinho pela doce Berenice. Será que vai dar romance?

NO PRÓXIMO CAPÍTULO...

Vamos conhecer o lacaio de Miguel, Leonel, e ver o que ele tem a dizer da moça que poderá vir a ser a próxima senhora Lontano.***

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