Capítulo 16 - Miguel

160 33 105
                                    

Miguel assistia à esposa dormir sozinha em sua cama, com os primeiros raios do dia tingindo seus cabelos com um dourado reluzente. Ela tinha uma respiração curta, com movimentos quase imperceptíveis. Em sua mão pousada na barriga, brilhava a aliança de casamento.

Ele praticamente não dormira. Tinha muito mais paz quando suas esposas estavam sob seu domínio. Sabia exatamente o que estavam pensando dele e que não estavam tramando nada. Berenice, porém, era um mistério. Uma incógnita que ele lutava para descobrir.

Algo havia mudado nela. Isso tinha ficado bem claro pela forma como eles foram dormir na noite anterior. Ela mal o encarava e se assustava ao seu menor toque. Quando ele voltara do banho, ela já estava dormindo, virada de costas para ele.

Como era tentador descobrir o seu segredo. Saber o que havia acontecido entre as poucas horas em que a deixara sonhadora, com um beijo na testa e um livro em seu colo, e o seu retorno, com uma distância inexplicável entre eles. Bastaria um olhar para resolver esse mistério e voltar a dormir em paz. Mas ele teria que descobrir isso de outra forma.

Quando ela despertou, ele estava apoiado no parapeito da janela, olhando para o vazio, apenas com os shorts com que costumava dormir. Já eram nove horas e ele ainda nem havia se vestido.

Ao percorrer os olhos pelo quarto para se acostumar com a claridade, Berenice se deparou com o marido, com uma expressão séria no rosto e os braços cruzados.

Ela sentou-se, preocupada.

— Você está bem? — Segurou o lençol sobre os joelhos dobrados, como se ele pudesse lhe oferecer algum tipo de proteção.

Miguel levou um pequeno susto por estar distraído, mas logo voltou à expressão austera que assumira.

— Acho que eu é quem deveria perguntar isso. O que você tem? — atirou a pergunta sobre ela, como uma batata quente.

Berenice se contraiu mais um pouco, mas depois empertigou o corpo. Fosse o que fosse que ele faria com ela, ela já não tinha nada a perder. Ele era tudo o que ela possuía.

— Não sou eu quem devo explicações a você. É você quem deve me dizer, por exemplo, quando pretendia me contar que já tinha sido casado quatro vezes.

Miguel congelou. De tudo o que poderia imaginar que fossem aqueles olhos temerosos e aquela frieza conjugal, esta seria sua última hipótese.

— Quem te contou isso?

— Não interessa quem me contou. Você não me contou! — acusou, encorajada pelo momento de surpresa e vulnerabilidade que não costumava encontrar no marido.

— Você nunca me questionou quanto a isso — Miguel rebateu, descruzando os braços e dando um passo em direção a ela. — Nunca pareceu se importar com o meu passado. O que importa isso agora?

— O que importa? — perguntou, ingidnada. — Acho que esse assunto muito me importa, porque todas as suas esposas morreram e, por acaso, sou eu que estou casada com você agora.

Um silêncio cruel se instalou entre os dois. Miguel a encarava com ferocidade e horror, cerrando os punhos com força. O coração de Berenice batia acelerado, enquanto ela culpava mentalmente Leonel por tê-la envenenado daquela maneira. Não, ele não a envenenara, concluiu. Ela decidiu pintar aquele terrível quadro do marido por conta própria, a partir de revelações que, a saber pela conversa que estava tendo com ele agora, eram verdadeiras.

— Eu não obriguei você a se casar comigo — falou Miguel, entredentes, procurando se conter. — De todas, você foi a única que eu não forcei a me amar. Então, não ouse me jogar na cara a morte delas, porque o que aconteceu com elas, jamais vai acontecer a você.

Berenice engoliu seco, temendo ainda mais o marido. Mais do que isso, estava arrependida por ter cutucado uma ferida tão profunda daquela forma. Era óbvio que ele devia ter sofrido sobremaneira com a morte delas, e ela não tinha o direito de tratar esse assunto tão levianamente, ainda que lhe dissesse muito respeito.

— Me perdoe, meu amor, eu não quis dizer isso, eu só... — começou, sem saber como terminar.

Miguel era uma pessoa tão diferente para ela, tão longe do mundo que estava habituada. Diante dele, ela se sentia apenas uma garota, enquanto ele era um homem feito, muito mais maduro e experiente em tudo.

Vendo que ele não se movia, ela reuniu a pouca coragem e a muita vergonha que sentia, e deixou a cama para ir ao seu encontro.

— Eu sinto muito — ela repetiu, parada diante dele. Sentia medo pelo contexto em que estava vivendo e pela face irada dele. Mas ele a transformara tanto no pouco tempo em que se conheciam, que desenvolvera nela uma confiança e uma ousadia que ela não imaginava possível.

Ele a olhava, como que se decidindo se deveria ou não deixar passar. Ele sabia que ela tinha todo o direito de tocar naquele assunto que ele deliberadamente ocultara, mas achava difícil perdoar essa acusação vinda da pessoa por quem ele estava lutando para ser verdadeiro o tempo todo.

Ela, então, decidiu romper aquela barreira, envolvendo o corpo dele com seus braços e apoiando seu queixo no ombro dele, quando ele não resistiu e se encurvou um pouco para que ela o alcançasse. Ignorá-la assim fugia de sua capacidade.

— Eu fiquei com medo — ela confessou, quando sentiu as mãos dele nas suas costas. — Porque muitas coisas me passaram pela cabeça quando soube de tudo isso.

Miguel suspirou, sentindo tristeza pelo que estava fazendo-a passar.

— Mas agora eu não estou mais com medo — ela continuou, olhando agora para ele. — Você é meu marido e eu confio em você. Quero acreditar que você não vai deixar acontecer isso comigo. Que o seu amor não vai deixar.

Ela sabia que estava correndo o risco de ser terrivelmente ingênua. Certamente, Miguel também nutrira bons sentimentos pelas esposas, sentimentos esses que não impediram que elas tivessem um fim trágico. Mas ela estava disposta a correr o risco, pois nada seria pior do que perder seu único porto seguro.

— Você vai envelhecer comigo, Berenice. Não vou deixar você ir — ele prometeu, não se importando de dizer isso aos olhos dela.

Naquela nova era da verdade, nada poderia ser mais sincero do que aquilo para ele.


---

Olá, minha gente!

Berenice chegou junto em Miguel para tirar satisfações. Mas acabou meio que amarelando no final, até porque não é bom ficar cutucando onça com vara curta, ainda mais se essa onça pode programar todas as suas lembranças o.O.

E aí, de que lado vocês estão? Acham que Miguel foi omisso ao não falar sobre suas esposas mortas, ou que Berenice foi ingênua ao não buscar essas informações antes do casamento?


NO PRÓXIMO CAPÍTULO...

Um gringo muito devoto a Miguel vem para o Brasil, falido, implorar ajuda ao sócio programador. E Berenice, enfim, irá conhecer o verdadeiro caráter do homem que escolheu como marido. Só posso dizer que as coisas nunca mais serão as mesmas entre eles...

Espero vocês lá! ***

O Programador de LembrançasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora