Capítulo 13 - Miguel

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Miguel estava deitado com Berenice dormindo em seu peito, movendo-se à medida que ele respirava. Já passava das duas da manhã e ele estava longe de adormecer.

A tensão daquele dia ainda pairava sobre ele. Como teria sido fácil, como foi das outras quatro vezes, sair daquela história ileso. Fazê-la esquecer do que testemunhou e voltar para a vida perfeita que tinham. Mas, se a verdade daquele dia tivera um custo, este ainda era muito menor do que o das tantas mentiras do passado.

Ele tentava relaxar os músculos enrijecidos dos ombros. Suspirava com a dúvida de não saber o que se sucederia, fazendo Berenice se mover um pouco sobre si. Ele deslizava a mão nas costas dela, sentido a maciez de sua camisola de seda. O calor dela enquanto dormia sempre lhe fora reconfortante, mas, naquela noite, era excepcionalmente vital. Ela sabia de tudo e, mesmo assim, repousava em tranquila paz em seus braços.

Nunca ninguém chegou tão perto dele assim. Ele sempre se pusera atrás do escudo do seu poder, protegendo seus segredos e sentimentos por trás de uma perfeita máscara de normalidade.

Refletiu ainda por muito tempo e, quando se deu conta, despertou com a luz do sol em seu rosto. Sentiu um vazio por não ter mais Berenice deitada sobre si, somente até ver que ela dormia virada para o lado oposto, talvez se esquivando da claridade.

Ele levantou, como sempre, antes dela, comeu algumas torradas e se trancou no escritório, com a intenção de afundar seus pensamentos perturbadores sobre o futuro com os reparos dos bugs do novo software da empresa. Entulharia sua mente de informações para não conseguir pensar em mais nada.

Chegava próximo das onze horas, quando ouviu batidas hesitantes na porta. Nenhum dos empregados costumava anunciar sua presença assim. Se fosse um assunto irrelevante, jamais se atreveriam a incomodá-lo. Se fosse algo sério, bateriam com firmeza na porta. Miguel se levantou, imaginando ser Berenice.

Sua mulher estava do outro lado da porta, com um olhar temeroso. Miguel não gostou nada daquela expressão. Nenhuma de suas mulheres tivera medo dele. Ao menos, não por muito tempo. Ele sempre deu um jeito para que elas confiassem nele cegamente. Aqueles belos olhos inseguros sobre mãos inquietas lhe partiram o coração.

— Quer alguma coisa, meu amor? — ele perguntou, sabendo da obviedade da pergunta. Ela não iria até lá sem um motivo. Nunca o interrompia, o que, no fim, era mais motivo de frustração, do que de alívio da parte dele.

— Eu só queria saber se estava muito ocupado — ela respondeu, ainda sem olhar para ele. Seria agora sempre assim? Nunca mais confiaria em seus olhos?

Miguel abriu mais a porta e deu espaço para ela entrar. Queria mais privacidade do que uma conversa no corredor, ao alcance de qualquer ouvido.

Berenice entrou, após alguma hesitação, ouvindo Miguel fechar a porta atrás deles. Ela se distraiu com um barco de madeira sobre a estante do escritório, que não estava acostumado a ter tanta atenção. Fora comprado em uma das viagens de Miguel e esquecido até aquele momento. Berenice tocava com cuidado as pontas do barco feitas de arame e barbante. Era uma obra bem minuciosa.

— O que você quer, meu bem? — Incomodou-se por seu toque nas costas dela tê-la assustado.

Berenice se virou, deixando o barquinho de lado. Olhou para Miguel pela primeira vez desde aquela revelação.

— Sobre o que você me contou ontem, — ela começou, falando quase num sussurro, obrigando-o a se aproximar mais para ouvi-la — eu queria saber... o que você pretende fazer com isso?

Berenice falava como se "isso" fosse uma doença que pedia alguma providência, o que o aborreceu na mesma hora.

— Como assim o que eu pretendo fazer com isso? Não há nada para ser feito. — Ele olhava com ferocidade para ela, escondendo na ira a vergonha pelo que era.

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