Capítulo 34 - Leonel

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O dia estava muito quente e aquelas roupas sociais que era obrigado a usar nunca foram tão incômodas. Ele iria falar com o patrão sobre isso quando tivesse oportunidade.

Ao adentrar a mansão, sentiu os batimentos cardíacos se normalizarem e a pele se refrescar com o delicioso e imediato efeito do ar-condicionado.

Leonel estava na copa, sozinho, vendo o gelo derreter em seu copo com água. Miguel havia saído há uma hora e só voltaria mais tarde. O orçamento dos novos equipamentos já estava sobre a mesa do escritório, com o melhor preço sinalizado com um post-it. O lacaio se perguntava se valia tanta eficiência para um homem tão medíocre como Miguel.

Concentrado demais em suas reclamações mentais, só percebeu quando a senhora Lontano se aproximou dele quando ela pegou um dos bancos e o posicionou do outro lado do balcão de mármore, sentando-se amigavelmente diante dele. O que ele não sabia, porém, é que apesar daquela aparente intimidade, a conversa não seria nada amistosa.

— Leonel, eu precisava conversar com você — Berenice falou, olhando-o detidamente. Mesma mania do patrão.

Ela também apoiou os cotovelos no balcão frio, entrelaçando os dedos à sua frente, ditando, com isso, a distância em que deviam permanecer.

— Pois não, senhora, em que posso servi-la? — ele perguntou cordialmente, endireitando a postura e esforçando-se para manter o profissionalismo, quando sua vontade era de mandá-la ir fazer as unhas, ou brincar de modelo, vestindo-se com o mundo de roupas que Miguel comprava para ela, e deixar de estorvá-lo ali.

— Há quanto tempo você disse que trabalha aqui? — ela começou, depois de parecer refletir um pouco sobre como daria início a um assunto difícil.

— Já vai fazer onze anos. — O que diabos aquela mulher queria ali?

— Sei... — ela continuava, testando a paciência de seu empregado. — E o que você acha do seu trabalho?

Leonel se obrigou a continuar olhando para ela, ao invés de revirar os olhos e bufar de tédio.

— É um excelente serviço, senhora, mas se me permite a pergunta, por que está me questionando quanto a isso? Estou deixando algo a desejar?

— E o seu patrão? — ela continuou, ignorando abertamente a pergunta dele. — O que pensa dele?

— Desculpe, senhora, mas não estou entendendo onde quer chegar — confessou, impaciente, pagando-se mentalmente a aposta de quando aquela ali iria caducar. Tinha apostado um ano e meio.

— Não precisa entender onde eu quero chegar, apenas me responda, o que pensa do meu marido?

Leonel respirou fundo, tomando o cuidado de não soltar o ar com rapidez e bufar. Como Miguel aguentava aquela mulher insuportável, era mais do que ele podia compreender.

— Meu senhor é um homem admirável, extremamente inteligente e perspicaz. Um bom patrão também, sempre preocupado com o bem estar dos seus empregados, paga em dia nossos salários e nos recompensa sempre que pode por ...

— Isso é mentira — ela sentenciou, com um sorriso contido, desafiando-o com o olhar e fazendo-o gelar por dentro por um instante, mesmo naquele calor. — Não é isso o que você pensa dele.

— Senhora, não estou entendendo.

— Você o despreza. E detesta o seu trabalho. Por você, ele morreria de fome. Nós todos. Se não fosse pelo bom salário, você deixaria toda essa sua pompa de bom empregado e mandaria todos às favas. É isso o que faria.

O lacaio arregalou os olhos, surpreso com a patroa. De todas as coisas que ele poderia esperar dela, aquela era, sem dúvidas, a última. Teve que admitir que, fosse qual fosse a intenção dela, ela era uma boa jogadora. Talvez, ele a tivesse subestimado.

— A senhora está enganada, eu realmente aprecio muito...

— Você nos odeia, Leonel. E, já que estamos só nós aqui, devo confessar que não tenho uma ideia muito boa a seu respeito também. Acho você um puxa-saco, um lambe-botas. E você também há de convir que o trabalho que você desempenha poderia ser bem melhor. — Berenice despejava as palavras sem olhar para ele, meneando a cabeça em sinal de reprovação. — Viver sempre sendo um capacho, sem nenhuma iniciativa própria, apenas um pau-mandado, não faz de você ninguém. Sinto muito, mas a verdade é que seu trabalho aqui é bastante dispensável.

Aquilo era o máximo que Leonel poderia escutar. Ela poderia acusá-lo de qualquer coisa, mas dizer que seu trabalho era dispensável? Dispensável era o seu patrão, que não era capaz, sequer, de calcular a própria fortuna! Tudo, absolutamente tudo o que tinha naquela casa de valor era devido ao árduo trabalho que ele tivera com aquela família. Dispensável era exatamente a mulher que lhe falava, que ele via agora que não estava apenas louca, era uma desvairada!

— Acho que a senhora está terrivelmente equivocada! — Levantou-se ameaçadoramente da cadeira, apertando com tanta força seu copo que, se fosse uma taça mais frágil, já teria se partido em sua mão.

— Pois eu estou certa que não, e não ouse levantar a voz para mim — ela ordenou, permanecendo sentada, mas com os nós esbranquiçados de seus dedos que seguravam o balcão delatando o seu nervosismo.

— A senhora não tem o direito de me insultar dessa maneira — ele continuou, largando o copo antes que se acidentasse, sentindo o rosto arder como em brasas. Queria poder estar enforcando aquele pescoço fino, ao invés do copo.

— Não o estou insultando. Só os medíocres recebem a verdade como um insulto.

Leonel não se aguentou e, dando a volta no balcão, alcançou o braço da patroa, antes que essa pudesse se levantar. Finalmente, ele viu o medo transparecer na face de pedra dela. É melhor que sinta mesmo muito medo, sua cadela — pensou.

— Você não é ninguém, Berenice — ele declarou, em um tom mais baixo, encarando-a de frente e espremendo o frágil punho dela com a sua mão incontrolada. — Não pense que por ter chegado até aqui passou a ser alguma coisa. Nem pense que por ter se casado com um homem rico como Miguel é alguém especial, porque muitas mulheres já passaram por aqui. Ele se casa com qualquer uma.

Leonel soube ter atingido o ponto fraco da mulher ao ver lágrimas brotando instantaneamente de seus olhos, que já não ousavam mais encontrar com os dele. Toda aquela coragem havia desaparecido, e a raiva que ele sentia se transformou facilmente em desprezo por aquela mulher ridícula. Só então percebeu que ainda apertava o braço dela, soltando-o e vendo as marcas que seus dedos haviam feito na pele inconvenientemente muito branca dela.

— Se a senhora não precisa de mais nada, — ele finalmente disse, recompondo-se e ajeitando o paletó — eu vou me retirar. Com sua licença.

E dirigiu-se até os seus aposentos, deixando Berenice sozinha com sua crise existencial na copa dos empregados. Agora que já perdera a aposta, o jeito era encurtar a estadia da quinta senhora Lontano ali.


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*** Mas, gente... Berenice endoidou de vez? Encarar assim o lacaio?

Deve haver algum plano dela por detrás disso... Algo que justifique tamanho risco dentro da já suficientemente perigosa casa.

A repercussão dessa tensa conversa? Só no próximo capítulo! =D ***

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