Capítulo 20 - Marcela

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Colocando novamente as duas folhas dentro do primeiro caderno, Berenice percebeu que tremia ao continuar vasculhando a caixa de Leonel. Era difícil decidir se aquilo consistia em uma traição ao marido, ou se ela estava em seu direito ao descobrir o passado daquelas mulheres.

O próximo caderno parecia bem mais "recheado" do que o primeiro. Continha várias folhas do que parecia ser um diário, escritas numa caligrafia precisa e bem legível. Havia um maço de folhas anexadas a cada página do caderno de contabilidade, este originalmente preenchido com números que Berenice não fazia ideia do que significavam.

Berenice olhou instintivamente para trás, como que para garantir que não fora tapeada por seus ouvidos, de modo a ter sido flagrada por alguém que não ouviu chegar. Tirou o primeiro maço do clipe, o qual continha o nome de Marcela, e constatou que as anotações estavam organizadas por trimestre. Berenice não soube se aquela organização poderia ser atribuída a Marcela ou Leonel, o fato é que ambos pareciam bastante sistemáticos.

12 de junho de 2004

"Dia do meu casamento com Miguel.

Marquei horário com a Cida para fazer meu cabelo, e a mulher teve a pachorra de me cobrar, como se eu não fosse sua cliente há anos. Era o dia do meu casamento!

A manicure nova dela ainda borrou minhas unhas duas vezes. Tenho que me lembrar de não deixar ela fazer meu pé de novo, quase me arrancou sangue com aquele alicate cego.

Miguel deixou cair alguma coisa no terno dele antes das fotos. Tive vontade de surtar com ele. Passei nabo pra tirar a mancha (apesar de não fazer ideia de como isso funcionou), mas ele me convenceu a ir com ele para o quarto e começou a me agarrar como se não tivéssemos meio mundo de pessoas nos esperando. A Vogue já estava ameaçando nos tirar da capa da revista de julho se atrasássemos mais um pouco. Mas eu não consegui dizer não àqueles olhos azuis perfeitos.

O Roger conseguiu se controlar na maior parte do casamento, mas não sei quem foi o retardado que mencionou o nome da Antônia, fazendo com que ele enchesse a cara e começasse a fazer cena. Precisou que papai tirasse ele de lá à força. Quase estragou minha noite.

O vinho que a Maggie trouxe da Alemanha estava sensacional. Miguel e eu o secamos em dois tempos. Ainda bem que papai estava cuidando de Roger, ou então ia ter um treco em me ver bêbada cantando "Living la vida loca".

A noite terminou maravilhosamente bem, apesar de eu não fazer ideia de como vim parar aqui no quarto de novo. O remédio para dor de cabeça já está fazendo efeito, agora tudo o que eu sinto é uma paz sem tamanho em estar deitada numa cama com dossel que faz eu me sentir uma rainha, ouvindo Miguel cantar "Forever Young" enquanto seca o cabelo. Se isso não é felicidade, então eu não sei o que é."

Depois dessa folha, Berenice viu que os manuscritos diários passaram a ser semanais, sempre comentando a respeito de presentes e coisas caras que Marcela comprava, serviços que ela encomendava ou novidades que chegavam para ela dos quatro cantos do mundo. Nada que interessasse, no momento, à atual senhora Lontano.

Percorrendo as folhas, pescando frases soltas e prevendo o conteúdo de cada anotação, Berenice notou que a sequência começou a falhar a partir de março de 2005, havendo algumas lacunas no tempo e chamando sua atenção para o conteúdo imediatamente anterior e posterior, a fim de obter alguma pista sobre o que estaria escrito lá. Provavelmente, fora algo comprometedor ou aterrador o bastante para levar Miguel a queimar.

21 de março de 2005

"Estou cansada de esperar Miguel todo o dia para fazer as refeições. Ele sempre come a hora que quer, isso quando sente fome. E a criatura nem é gorda, dá pra acreditar? Injustiças da natureza.

Saí com a Regina e com a Paula. Não vou ficar mais enfurnada dentro de casa. Miguel não se importa de eu passar a tarde fora, desde que esteja de volta à noite, linda, leve e loira, e ainda bem disposta.

Cadê todo aquele romantismo do início do casamento? As flores quinzenais viraram já quase mensais. O pior foi o anel com um diamante do tamanho de uma semente de uva no dia do nosso aniversário de namoro. Ele veio com a conversa de que não namoramos mais, portanto não comemoramos mais. Viu a cara de bunda que eu fiz e tratou de pedir pro Leonel comprar algo pra mim. O coitado do Leo teve que se virar com o trocado que ele deve ter dado. Isso porque ele tem tantos zeros na conta, que nem sabe mais o valor do próprio patrimônio.

Homens. Ricos."

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22 de abril de 2005

"Ah, meu Miguel, não para de me surpreender. Hoje me levou a uma casa de shows no centro e monopolizou a pista de dança só para nós. As exaustivas aulas de dança com o boliviano ligado no 220 se fizeram muito preciosas naquela hora, obrigada Ramón!

Fomos também viajar no final de semana passado, mas devo ter bebido demais. Não consigo me lembrar de quase nada das Ilhas Gregas. O pior foi a vergonha que passei com a Paula, que me mostrava no celular as fotos dos principais pontos turísticos que eu sei que passei, sem que eu conseguisse demonstrar uma lembrança sequer do lugar.

Ela também me pediu as fotos que Miguel e eu tiramos, já que, pela minha memória, ela não ia saber nada, até que eu descubro o que? Que o Miguel deixou o celular no hotel, com todas as nossas fotos lá!

Quem ouve agora eu falar, acha que eu sou a louca que nem sabe para onde foi. Agora, vê se alguém pergunta pro Miguel onde ELE estava com a cabeça para deixar todas as nossas recordações do lugar em cima da prateleira em um hotel a quase 10 mil km daqui."

Berenice sentiu um frio percorrer o corpo ao imaginar que Marcela talvez nunca tenha estado nas Ilhas Gregas, ao menos não naquela data. O que será que Miguel havia tentado esconder dela? O que aconteceu naquele intervalo de tempo?

Ela preferiu não gastar mais tempo com aquele assunto, tendo ainda duas esposas para conhecer. Ia pegando o terceiro caderno quando caiu do caderno de Marcela uma foto de uma mulher lindíssima, segurando um drinque e sorrindo para a câmera, como se aquela felicidade não pudesse ser contida.

Tomou com cuidado a foto nas mãos para não marcá-la com seus dedos suados. Ela parecia ter em torno de 30 anos, usava um vestido verde escuro com bordados pretos, formando flores em seu busto e em sua cintura, até onde a câmera pôde captar. Os ombros estavam nus e, pelo brilho da pele, ela já devia ter aproveitado bastante a festa, ou onde quer que estivesse. Seus cabelos loiros estavam presos para trás, com algumas mechas encaracoladas caindo harmonicamente nos ombros. Ela brindava com um sorriso franco, apoiando um cotovelo confiantemente na mesa atrás de si.

Não havia nenhuma inscrição na foto, mas Berenice teve a certeza de que era Marcela. Podia sentir as palavras que lera sendo escritas por aquelas mãos que seguravam a taça com a firmeza e o requinte de quem estava acostumada àquele ambiente. Acostumada a ser o centro das atenções.

E se perguntou, mais uma vez, o que Miguel vira nela mesma, para colocá-la como dona da mesma casa onde aquela verdadeira rainha havia reinado.


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*** Mais uma senhora Lontano sendo revelada a Berenice. Uma mulher determinada, de presença marcante, em contraste com a romântica e sonhadora Catharina.

Mas o que realmente houve nesse ínterim entre os manuscritos? E o que se passou no que seriam belos dias passados nas Ilhas Gregas??

Parece que nosso Programador terá muito o que explicar depois de tudo isso..Ou, talvez, o silêncio seja a única forma de Berenice ainda permanecer sã...***

O Programador de LembrançasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora