Capítulo 32 - Heloísa

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Foram necessários alguns dias para que Miguel e Berenice voltassem a se encarar. Apesar de se tocarem e se entregarem, não houve mais nenhuma palavra entre eles, nem um olhar. Tratavam-se como dois feridos de guerra que eram. Nenhum dos dois queria se machucar mais. Nenhum deles podia se machucar mais.

O tempo, porém, cicatrizador crucial para as feridas do corpo e da alma, permitiu que eles se vissem sob o véu de uma noite escura e fria, e que Miguel recebesse, enfim, parte de um perdão que tanto esperava de sua amada, em forma de um olhar. Berenice não podia perdoá-lo por tudo o que fez, precisava ainda manter uma segura barreira contra os seus poderes. Esquecer o que ele fez seria esquecer do que ele era capaz, e correr o risco de se esquecer de todas as outras coisas. Mas o amor não negocia liberdades, e seu coração simplesmente não a deixava ir. Tinha que ficar com Miguel, se quisesse viver inteira, fosse o tempo que durasse ali.

Além disso, ela ainda tinha um diário para encontrar. Ler as anotações da quarta esposa, ou sobre a quarta esposa, era a esperança que tinha de encontrar uma solução definitiva para aquele casamento mortal. Miguel escondia dela esses manuscritos, mas, o que ele talvez temesse revelar, poderia ser a chave para o seu sucesso. Uma única mudança no rumo das coisas, que faria toda a diferença para o final de sua história.

Somente depois de algumas semanas, Berenice conseguiu colocar em prática seu plano de invadir o quarto de Leonel. Como Miguel já havia aniquilado as lembranças dele sobre a caixa, ele poderia, muito bem, tê-la escondido nos aposentos do lacaio, uma vez que Berenice nunca mais teria autorização para entrar lá. O que não queria dizer que ela nunca mais estaria lá.

Após certificar-se de que os dois homens haviam saído de casa, Berenice foi até o cofre do marido em seu closet, com o número da senha que ele lhe havia passado quando se casaram, e pegou o molho de chaves reserva de todas as portas da casa.

O molho era enorme. Felizmente, a organização impecável de Miguel fez com que ele mantivesse uma lista com o número de cada chave e que porta ela abriria. Ela encontrou facilmente o número da chave do quarto de Leonel.

Tentando passar pelos corredores como uma sombra, ela tinha conseguido chegar até o aposento do lacaio sem ser percebida, mas, enquanto abria a porta, um empregado a surpreendeu.

— A senhora está procurando alguma coisa? — o empregado perguntou, olhando, confuso, a chave em suas mãos.

— Ah, sim — ela respondeu, tentando não soar como uma criminosa. — Meu marido acabou de ligar, dizendo que quer um documento que Leonel deixou no quarto dele.

O empregado a olhou desconfiado, não parecendo muito satisfeito com as explicações dela.

— Mas a senhora tem certeza de que esse documento está aí dentro? Não sei se o senhor Leonel gostaria que alguém entrasse nos aposentos dele, sem que ele estivesse aqui.

— Pois esse alguém é a dona dessa casa e patroa dele também — Berenice retrucou, rudemente. — Acho que não é a você que eu devo explicações.

Ela sabia que aquela arrogância não lhe pertencia, até porque o empregado estava certo, mas ele não tinha noção do perigo que ela estava correndo ali. Do perigo que todos estavam correndo.

Impotente, o empregado pediu desculpas e a deixou.

Tomando novo fôlego, Berenice finalmente abriu a porta e entrou no quarto. Não sabia quanto tempo teria ali, mas, certamente, não seria muito. Isso, se o empregado não resolvesse dar com a língua entre os dentes e fazer o marido e o lacaio retornarem para casa em um piscar de olhos.

Tudo estava exatamente do mesmo jeito como ela vira da outra vez. Todas as coisas meticulosamente organizadas. Em cima da mesa, porém, descansavam apenas folhas em branco e uma caneta. Não havia nem sombra da caixa.

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