Capítulo 22 - Miguel

131 26 96
                                    

Não era preciso muita genialidade para perceber que as coisas não iam muito bem com Berenice. Miguel pensava a todo momento que, um dia, cairia no abismo que ela estava criando entre eles.

As conversas francas que tinham um com o outro já eram coisa do passado. Eles passaram a se encontrar cada vez menos durante o dia, com desculpas de compromissos que os dois arranjavam. Ele não estava também disposto a mendigar sua atenção, quando ela parecia preferir ler seus romances ou ficar no computador, fazendo cursos online das mais variadas coisas, do que conversar com o próprio marido. Por isso, passava horas longe de casa ou trancado no escritório, encontrando-se com Berenice, às vezes, apenas no jantar.

Quando estavam juntos, ambos mantinham uma falsa cordialidade, conversavam sobre amenidades e, depois, subiam para o quarto ou iam para a sala de tv.

Miguel não estava nada satisfeito com aquela situação. Nunca permitiu que seus casamentos anteriores chegassem a esse nível de frieza. Nunca permitiu que nenhum relacionamento que ele quisesse manter ficasse assim. E se perguntava até quando estaria disposto a deixar as coisas daquela forma.

Em contrapartida, a lucidez da esposa o encorajava a prosseguir. Vê-la em paz em seu próprio mundo, ao invés de prisioneira do mundo que ele havia criado, fazia com que ele achasse que valeria a pena o sacrifício. Um dia, ela entenderia aquela prova de amor. Entenderia o quão difícil fora para ele ter a coragem de vivenciar um relacionamento verdadeiro.

Por enquanto, ela parecia culpá-lo. Culpá-lo por várias coisas, mas, sobretudo, por não ter aberto o jogo antes de se casarem. Ela parecia ter aceitado bem a sua "anormalidade", contanto que ele não a usasse contra ela. E ele não usou. Ainda assim, o abismo era feito de ressentimentos que, com certeza, tinham a ver com seus poderes.

Sim, ela parecera estarrecida com a história do gringo. Mas o que ela tinha que se meter naquele assunto? Desde quando uma moça caseira e pouco ambiciosa entendia de grandes negócios? Como ela pensava que um homem da idade dele teria enriquecido? E o que ela achava que qualquer pessoa faria no seu lugar, se tivesse o seu talento?

Essa última questão sempre atormentava Miguel. Todos pareciam prontos a julgá-lo, mas quem poderia fazer melhor? É muito fácil acusar alguém quando não se tem as mesmas tentações. A verdade é que poucos poderiam agir diferente em seu lugar.

Em uma noite em que subira para o quarto, viu a esposa acordada, deitada de barriga para cima, olhando para o teto, sem notar sua presença. Parecia que se passava uma história tão interessante em sua mente, que Miguel teria a coragem de quebrar a sua promessa, só para perguntar aos olhos dela que história era aquela.

Ao apoiar sua mão em um pilar do dossel, Miguel acabou fazendo sombra no rosto dela, despertando-a do seu enredo.

— Você me assustou — Berenice disse, como se o susto não fosse por não ter reparado a sua presença, mas por, simplesmente, estar diante do monstro que a atemorizava.

— Sinto muito. — Ele não saiu do lugar. Temia estar aparentando a vulnerabilidade que sentia, mas não aguentava mais não estar no mundo da mulher que tanto amava.

Ela também não se mexeu, até que puxou os lençóis ao lado dela, abrindo espaço para ele se deitar.

Miguel foi ao seu encontro, como uma criança vai para a cama dos pais em um dia de temporal. Se tinha que atravessar aquela tempestade, que ao menos fosse nos braços dela.

Ambos ficaram em silêncio se olhando, como se estivessem em um jogo não declarado. Nenhum queria errar. Nenhum queria perder.

— Você ainda me ama? — Miguel perguntou, lançando sua carta, lançando sua sorte. Alguém tinha que começar e, se fosse ele, que fosse com sua melhor arma.

O Programador de LembrançasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora