Capítulo 18 - Berenice

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Berenice não viu o marido pelo restante do dia. Evitou sua presença deliberadamente enquanto pôde, até ser obrigada a encará-lo ao dormir. Tal foi a sua surpresa quando, mesmo tendo esperado a noite toda, não o vira chegar. Ao que tudo indicava, Miguel dormira fora de casa.

No dia seguinte, ela estava ainda menos disposta a vê-lo. A voz lacônica dele ao encher a cabeça do gringo com mentiras, e a expressão de sincero agradecimento do homem que ele arruinara, ainda estavam em sua mente. Como era possível ser esse o mesmo homem com quem se casara? Com quem conversara um dia, naquele mesmo jardim que agora olhava da sua sala particular?

Ela comeu automaticamente alguns bolinhos com café, mas acabou deixando a maioria deles no prato. Estava com os olhos distraidamente pousados do lado de fora da casa, quando um vulto atrás de si a assustou.

— Bom dia, senhora — cumprimentou Leonel, anunciando sua presença um pouco tarde. — Desculpe interrompê-la, a senhora tem um minuto?

Berenice assentiu com a cabeça, temendo o que trazia o lacaio ali. Da última vez que ele fora ter com ela, insinuara coisas sobre seu marido que ela preferia nem lembrar.

Leonel aproximou-se mais um pouco, olhando o mesmo ponto que Berenice comtemplava ao chegar, como se estivesse curioso com o que quer que fosse que tenha chamado tanto a atenção da patroa.

Ela o observava, imaginando que, quando mais jovem, Leonel devia ter sido um homem bem bonito. Tinha olhos meio esverdeados, cabelos castanhos, uma pele clara que evidenciava uma pinta marrom de um lado da testa e uma altura considerável. Calculava que, agora, teria uns cinquenta anos, no máximo, e muitas experiências acumuladas.

— Sinto muito pelo que a senhora teve que presenciar ontem — ele disse, quando viu que ela o fitava longamente.

Berenice não gostou nada do comentário dele. Era como se ela fosse uma criança que presenciara a discussão dos pais. Ele era um empregado, ora, como se atrevia a dizer que sentia muito por algo que só dizia respeito aos patrões? Mesmo assim, ela decidiu guardar o silêncio, na expectativa do que quer que o tivesse trazido ali fosse mais importante.

— Infelizmente, esse tipo de coisa é uma constante na vida do senhor Miguel — ele revelou, olhando para o chão, como se guardasse segredos demais que poderiam ser delatados em um olhar.

— Leonel, por favor, o que você quer me dizer? — Berenice perguntou, ficando mais impaciente a cada minuto. Talvez pela forma lenta dele falar, ou por temer terríveis revelações, ela sentia como se ele agisse em câmera lenta.

Leonel hesitou por um momento, cerrando os dedos longos diante de si, parecendo refletir se devia ou não seguir adiante. Olhou para ela e decidiu que sim, pois deu um passo à frente e desabafou.

— Senhora, eu preciso revelar uma coisa — ele anunciou, falando mais rápido, aparentemente por medo de perder a coragem. — O senhor Miguel não é quem pensa ser. Ele sempre tratou muito bem suas esposas e, até onde consta, sempre foi um marido exemplar. Mas o fim de cada uma delas mostrou que houve mais coisas do que os casamentos aparentavam.

Berenice o olhava com os olhos arregalados de expectativa. Ela mal respirava. Queria gritar com o lacaio, dizer para não difamar assim seu patrão, mas algo nela a alertava de que ele poderia estar salvando-a de algo que ela não podia ainda mensurar a magnitude.

— Eu, certamente, não seria a pessoa mais indicada para preveni-la do que quer que fosse. Sou apenas um empregado e, embora possa não parecer, devido à minha ousadia, sei qual é o meu lugar. Mas os sucessivos fracassos dos casamentos anteriores me obrigam a alertá-la do que pode estar por vir.

Leonel olhou para trás, antes de prosseguir.

— Tome, pegue isso. — Ele se aproximou mais, tomando a mão da patroa e oferecendo furtivamente a ela uma chave. — É a chave dos meus aposentos. Em cima da minha mesa, está uma caixa com anotações que a senhora deveria tomar conhecimento o quanto antes.

As mãos do lacaio tocavam as dela, oferecendo um portal para a salvação ou para a desgraça. Aceitar aquela chave poderia poupá-la de uma morte trágica, como poderia arrancar dela a única chance de ser feliz.

— Do que se tratam essas anotações? — ela perguntou, com a própria mão endurecida, recusando-se a segurar a chave, como se isso já fosse a sua sentença.

Leonel demonstrou uma leve irritação no olhar, mas logo tratou de afastá-la.

— São anotações das suas antecessoras — declarou, escondendo a chave de volta em sua mão recolhida. — Elas tinham o costume de manter uma espécie de diário, revelando coisas a respeito da sua vida conjugal. Eu presenciei o senhor Miguel tirando delas a localização de tais manuscritos e queimando-os em seguida, sempre que lhe era conveniente. Algumas notas, porém, estão em meu poder, por diversas razões. Algumas eu encontrei após o falecimento delas. Outras, eu mesmo tomei, por saber que seriam destruídas, se descobertas. E outras, ainda, elas me deram, por perceberem que suas antigas anotações estavam sumindo e por confiarem a mim esse cuidado.

Berenice estava estática diante dele, ainda apoiada no parapeito da janela. Parecia não haver outra escolha, senão aceitar a possibilidade que ele lhe oferecia do que quer que fosse.

Engolindo em seco, ela estendeu a mão para que Leonel entregasse a chave.

— E Miguel? Se souber disso, vai acabar com você — ela disse, sendo mais prática do que covarde.

— Não se preocupe. Ele disse que só chegaria depois do almoço. Além disso, ele nunca vai até os meus aposentos. Por isso estou levando a senhora até lá.

Ela concordou e guardou a chave no bolso, esperando ele sair para reunir a coragem necessária para ir até o piso debaixo descobrir o passado daquela casa. E, quem sabe, o seu provável futuro.

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*** Amigos leitores, chegamos à metade da nossa jornada! Agradeço demais você que me acompanhou até aqui, me dando incentivo para continuar! ^^

Seja qual for a verdadeira intenção do lacaio, Leonel acabou de abrir um portal para Berenice conhecer o passado da mansão que hoje chama de lar. Daqui para frente, conheceremos um pouco sobre cada uma das senhoras Lontano e, talvez, tenhamos alguma pista sobre o verdadeiro mistério que esteve por trás de suas mortes. 

Quem é, afinal, Miguel? Vilão ou mocinho da nossa história? E o que fará com Berenice? Será que tivemos as impressões certas sobre os personagens, ou fomos enganados desde o começo?


Continuem comigo e se preparem para grandes surpresas! ***

O Programador de LembrançasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora