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Overdose

- Alice Escobar -

- Você não é especial. - Ela disse. - Não é a única de nós que já sofreu. Não é a única que fica acordada à noite se preocupando com a segurança de seus entes queridos. Não tenho pena da sua dor ou dos seus problemas.

- Que bom. - Falei, mais do que equiparando sua raiva. - Contanto que as coisas fiquem às claras entre nós.

Isabel sacudiu a cabeça e jogou as mãos para cima, parecendo, por um momento, prestes a rir. Ou a chorar.

- O que diabos ele vê em você? Você não passa de uma narcisista insensível de coração gelado. Não se preocupa com ninguém além de si mesma. Espero que você tenha noção da sorte que tem por Pablo tolerar sua presença. Você nem estaria aqui se não fosse por ele. Certamente eu não bancaria você.

Abaixei os olhos, absorvendo esses golpes com indiferença estudada. Meu corpo não era diferente da lua, tão completamente repleta de crateras provocadas pela brutalidade que era difícil imaginá-lo intocado pela violência.

- Boa noite. - Disse, baixo, e me virei para sair.

Ouvi Isabel suspirar, sua ira crescendo à medida que me afastei.

- Alice, espera! - Ela disse, chamando atrás de mim. - Ainda não terminamos essa conversa.

Não olhei para trás.
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- Pablo Gavira -

- Parem. - Eu disse, minha voz demonstrando um pouco da minha ira. - Parem de xingá-la. Ela não é uma idiota. Ela não é uma babaca. Ela não é egocêntrica. Eu não sei por que vocês acham que está tudo bem ficar simplesmente dizendo as coisas terríveis que bem entendem a respeito dela, na cara dela, como se ela fosse feito de pedra. Todos vocês fazem isso. Todos a insultam sem parar e ela apenas aceita, nem mesmo diz nada... E, de alguma forma, vocês se convenceram de que está tudo bem. Por quê? Ela é uma pessoa real de carne e osso. Por que vocês não se importam? Por que acham que ela não tem sentimentos? O que diabos há de errado com vocês?

Finalmente tive coragem de deixar pública a minha opinião sobre os ataques que estavam sendo feitos em Alice.

Todos tinham acesso a cena que tinha acabado de fazer.
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- Alice Escobar -

Estava deitada acordada, totalmente vestida, afundando na escuridão por horas.

Eu me senti congelada. Presa a um chão frio pelo medo, arrepios familiares ganharam vida em meus braços e pernas.

Meus olhos se abriram de repente; não consigui respirar.

Sem nem perceber, peguei uma joia, meus dedos encontrando a pedra lisa do anel de jade no escuro, a peça que fazia parte de mim. Não consegui lembrar como seria meu pescoço sem ela. Girei o aro frio em volta da minha corrente em um movimento repetitivo e familiar, perguntando-me se foi um erro, todos esses anos, manter esse símbolo do luto tão perto da minha pele.

O anel fora um presente da minha mãe para Leonardo. E, no entanto, as memórias associadas a este objeto são tão sombrias e dolorosas - lembretes em cada momento da tirania de Anderson, do meu próprio sofrimento, do final que o restante da família teve.

Muitas vezes tive vontade de trancar essa lembrança da minha infância torturada. Tocar nele, mesmo naquele momento, lembrou-me de versões de mim mesma - meses, um ano, depois dois, três, quatro e cinco anos - que uma vez o agarrou desesperadamente enquanto eu gritava, a dor explosiva se ramificando nas minhas costas, repetida.

Por muito tempo, eu não queria esquecer. O anel sempre me lembrou da brutalidade do meu pai, do ódio que me motivou a permanecer viva, mesmo que apenas para irritá-lo.

Mais do que isso, era tudo o que me restava da minha família.

E, no entanto, talvez aquele anel tenha me amarrado à minha própria escuridão, aquele símbolo de repetição infinita fadada a conjurar, para sempre, as agonias do meu passado.

Às vezes temia ficar presa para sempre neste ciclo: incapaz de ser feliz, inseparável dos meus demônios.

Fechei os olhos, e as cenas do dia se repetiram como se estivessem em um loop automático. Parecia condenada a reviver os eventos para sempre, vasculhando-os em busca de respostas, de evidências de qualquer coisa que possa explicar o que estava acontecendo com a minha vida. E, apesar dos meus melhores esforços para excluí-los, lembrei-me da voz de Isabel...

Todo mundo pode trair todo mundo, e Gavi não é exceção.

- Pensei que já tivesse aprendido, Alice. Todo mundo pode trair todo mundo. E Gavi a traiu mais uma vez. - Ela deu um passo ousado à frente, ficando a poucos metros de distância. Ela puxou o ar pelos dentes, como se tentasse sentir o ar saindo dos meus pulmões. - Não consegue admitir o que ele é? - Isabel murmurou, como se implorasse. Como se fosse o último pedido de uma mulher morta.

Ergui o queixo, sem tirar os olhos dela.

- Imperfeito, como todos nós.

Seu deboche reverberou no fundo do meu peito.

- Você não passa de uma narcisista insensível de coração gelado.

- Espero que você tenha noção da sorte que tem por Pablo tolerar sua presença.

- Estou de saco cheio dessa sua atitude.

- Não faço ideia do que ele vê em você.

- O que diabos ele vê em você?

Acontece que eu não queria mais aqueles pensamentos.

Eu só queria dormir, mas nem disso eu era capaz.

Demônios saiam da minha mente que eu quero dormir.

Travesseiro já está quente, alguém me ajuda aqui.

Pálpebra não pesa que nem antes.

Permaneço acordada, sonho está sempre distante.

Tentei de tudo, mas o sono está de birra. Me mexo, fecho o olho e nada muda.

É pedir demais descansar, sentir a paz?

Me deixa dormir, pelo amor não aguento mais.

Fiquei de saco cheio daquela situação.

Levantei e caminhei até meus remédios. Estava tudo escuro, então só peguei qualquer um e coloquei uma quantidade considerável na minha mão. Levei tudo a boca e mastiguei enquanto voltava para cama.

Reconheci o gosto amargo e horrível na língua.

Descobri da pior maneira qual remédio havia ingerido.

Em CampoOnde histórias criam vida. Descubra agora