Capítulo III - Wanderley relembra

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Sempre que estava triste, Wanderley gostava de ir para o morro do Cristo e observar Juiz de Fora do alto. A visão da cidade imensa lá em baixo, o vento frio na cara, o pensamento voando...

Lembrou-se de quando era adolescente e estudava no Colégio Granbery. Vivia cercado de garotas e tinha um milhão de namoradas. Lembrou-se de quando conheceu Ligia e se enamorou logo da linda garota da sala. Não havia lugar algum em que não fossem vistos juntos. Não havia espaço para um onde não coubesse o outro. Eram mesmo unha e carne, como diziam.

O casamento foi lindo. A igreja cheia de convidados e as mães dos noivos felizes com o evento. Ligia estava dócil como sempre fora e trazia na mão um buquê de orquídeas ostensivo.

Uma viagem de lua de mel maravilhosa pelo sul do país de mais ou menos um mês e o retorno onde começaram as brigas e os desentendimentos. Ele não entendia a mudança que sofrera a esposa. Em menos de um ano de casados e já estavam em uma situação insuportável.

Houve então, o aborto. No dia que Ligia lhe contara que estava grávida, talvez o dia mais feliz de sua vida, ele estava com a vida realizada: casado, feliz, grávido. Tudo para dar certo. Com certeza ela teria a criança e se tornaria outra vez a mulher por quem ele se apaixonara anos antes. Enganara-se, no entanto. Quando ela começou a passar mal e no hospital lhe informaram que ela perderia o bebê, ele não suportou a perda e entrou em séria depressão. Não lhe seria fácil depois daquilo conviver com a esposa que provocou o aborto de seu filho. Ele nem mesmo quisera saber o sexo do feto abortado no terceiro mês de gravidez. O que ela lhe fizera deixara marcas profundas e logo que pôde, tão logo ela voltou para casa após quinze dias de internação - quase morrera de infecção -, ele saíra de vez de casa, do casamento e esperava que da vida dela. Outro engano já que ela nunca mais lhe dera paz. Sempre que podia ela lhe infernizava a vida.

Quando Wanderley conheceu Giuliano e passaram a namorar e morar juntos, a cabeça da "esposa traída" não foi mais a mesma. Cria ela que tudo fora acontecendo por culpa exclusiva do marido e inclusive o aborto que cometera a ele atribuía a culpa. Ela não suportava a ideia de que o marido estava com um homem. Para ela era a vergonha maior que uma mulher poderia sofrer. O que diriam as amigas, as senhoras do bairro, as pessoas da igreja. Ela se sentia uma mulher suja, inútil, destruída por ter se casado com um homossexual, uma aberração, segundo ela. Era uma mulher que fora criada com preconceitos e muitos limites impostos pelo pai opressor e uma mãe fútil e destinada a ser uma "mulher de homem rico". Viviam na sociedade e da sociedade dependiam. Comentários como esse eram o fim da vida de glamour.

Ligia era homofóbica e por várias vezes na vida fora cruel com amigos gays. Ela não se perdoaria por ter errado na escolha do marido.

Tentara suicídio uma vez. Como saber se ela queria mesmo morrer ou somente chamar a atenção de parentes e do próprio Wanderley? Tomara uma caixa de soníferos e uma garrafa de vodca. Fora atendida a tempo e salva da besteira que queria fazer. Um suicídio que livraria o ex-marido de tanto aborrecimento, mas um suicídio não é uma brincadeira. Ela estava deprimida, bebendo demais, sem ver um caminho para seguir e com todos os traumas na sua cabeça a incomodar: era uma "mulher largada do marido", não fora criada para trabalhar e se manter, tinha uma família bastante tradicional e opressora e seu mundo se restringia a ser uma mulher bem casada que acompanharia o marido nas festas e encontros da sociedade local. Era a perfeita dondoca, como se designam esse tipo de mulher.

Wanderley não podia compreender o que estava acontecendo com a mulher e algumas vezes até tentou ajudá-la. Procurou com ela ajuda psicológica e ela não quis continuar a terapia. Tentou convencer a família dela da necessidade de ajudá-la de alguma forma e a sua mãe quase o expulsou da casa onde morava com a desequilibrada alegando que a filha estava do jeito que estava por culpa exclusiva dele. Não havia mais o que ele pudesse fazer.

Muitos anos e ele ainda convivia com os ataques neuróticos da ex-esposa, sempre apoiado pelo companheiro que entendia e aceitava bem a situação, mas Wanderley não se continha após ataques como o de hoje e acabava deixando os nervos falarem mais alto. Ficava sempre muito triste com cenas como a que Ligia fizera no escritório.

Estava ali, agora, pôr do sol, vento, frio, a ponto de querer esganar um, de preferência a própria que o levara a tal estado. Juiz de Fora estava a seus pés. Linda e grande cidade do interior de Minas Gerais. A cidade crescia cada dia mais. É uma cidade de universitários, há várias faculdades dos mais variados cursos, próxima do Rio de Janeiro o que fazia com que os mineiros de Belo Horizonte chamassem os juiz-foranos de "cariocas do brejo". O Morro do Cristo é o ponto mais alto de onde se vê grande parte da cidade.

Ele precisava se conter e voltar para casa. Eram quase seis horas e Giuliano deveria estar esperando por ele para poderem sair, se divertirem um pouco naquela noite de sexta-feira. Não podia mais ficar remoendo e se martirizando com as loucuras de um passado que não conseguiria mais tirar de sua mente. Ah, bons dias seriam os dias de férias. Roma, quem sabe uma passadinha em Paris? Precisava voltar para casa e para quem realmente podia contar na sua vida. Precisava estar com a pessoa que amava e como sempre ter o apoio e o carinho de Giuliano nessas fases difíceis da vida. Voltou-se e entrou no carro. Dirigiu a toda velocidade para o centro da cidade. Não via hora de poder abraçar o amado e esquecer as confusões do dia a dia. Por que com ele não era igual a Giuliano? Pensou. A esposa do outro vai se casar e ainda manda convidar para as bodas. Quem lhe dera ter o mesmo tipo de relacionamento com a ex-esposa. Mas ela era louca, a outra não.

O FILHO DE BERTAUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum