CAPÍTULO 64

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O inverno vigoroso chegara inesperadamente forçando o silfo Roubert a tirar a vida de um animal. Com pesar e bastante respeito pelo cervo abatido, removia-lhe a pele, e órgãos internos. Lavava-o nas águas geladas de um riacho, afluente do rio Aluviris, que descia as montanhas da província de Vaomont. Havia um rastro avermelhado traçado na neve, levando até o local no qual o animal fora abatido por uma flechada precisa. O trato com o animal deixou as vestes de Roubert sujas de sangue. Nesses tempos, o silfo deixara seu cabelo e barba, negros e anelados, crescerem um tanto. Já não usava cavanhaque como de costume.

Perto dali, esperavam por ele alguns rebeldes recém-foragidos precisando descansar e comer. Radishi chegara duas noites antes e tiveram uma rápida conversa sobre a Modevarsh. O Tisamirense procurou não repassar as preocupações do velho silfo, apenas deixou claro que talvez Roubert devesse fazer uma visita ao ancião antes de partir para encontrar-se com a facção sulista da rebelião, próximo à capital do reino.

Saíram juntos da cabana logo cedo, porém com destinos diferentes. Roubert precisava caçar e Radishi fora investigar uma presença mental, forte e incomum, recém-chegada à região.

Quase ao meio do dia, ainda sob céu nublado, Radishi conseguiu ter certeza a quem pertencia o padrão mental que captara, por alguns instantes, no início da madrugada. Tratava-se de Vekkardi. Com a constatação, o Tisamirense, tenso, olhou para o céu e suspirou forte. Desenrolou da face uma manta que o protegia contra o frio. O ar quente que saiu da boca, desenhou uma nuvem vaporosa que sumiu a favor do vento. Respirou profundamente o ar gelado das montanhas cobertas de neve e concentrou-se. Não muito longe, Vekkardi pode ouvir em sua mente.

“Vekkardi! Estou surpreso em encontrá-lo”

O viajante tropeçou surpreso pelo contato mental inesperado. Apoiando as mãos sobre a neve procurou recompor-se.

Pode ouvir a voz do tisamirense dentro de sua cabeça de novo. “Desculpe-me se o surpreendi... Mas imaginei que assim pouparíamos tempo.”

E então, houve silêncio. Vekkardi estava despreparado. Radishi poderia sondar sua mente, ler seus pensamentos, saber que esteve entre os necromantes, descobrir suas intenções. Decidiu confiar no que aprendera com Alunil sobre disciplina mental.

“Radishi? Pode me ouvir?”

“Pois sim, Vekkardi. Sugiro que nos encontremos o quanto antes. Gostaria de ouvir novidades suas.”

“A que distância você está? Consegue saber?”

“Não muito longe. Fique onde está. Será mais fácil para eu localizá-lo.”

Vekkardi aguardava tenso. O que faria quando ficasse cara-a-cara com o tisamirense? Será que Radishi o ajudaria? E se mentisse? Conseguiria de fato esconder a verdade de alguém capaz de ler pensamentos? Perceber emoções?

Quando avistou Radishi se aproximando procurou relaxar um pouco. Estava coberto por pesadas roupas de frio. Há tempos não o via de turbante. O rosto também estava escondido, podia apenas reconhecê-lo por seus olhos de azul cristalino. Era certo que o tisamirense captaria alterações no seu estado emocional, captaria a tensão. Mas tensão não pressupunha traição. Pelo menos não de antemão.

O alívio foi grande quando após rápidos cumprimentos, o tisamirense sugerira discutirem sobre sua viagem durante uma ceia, no chalé ao norte no qual Roubert e outros estariam esperando. Isso lhe deu um pouco mais de tempo para pensar no assunto. Enquanto subiam, Radishi fez alguns comentários a respeito dos acontecimentos recentes. E quando o assunto da saúde de Modevarsh surgiu, Vekkardi corou, só de imaginar o que diria ou pensaria seu tutor sobre sua recente conduta.

Maré VermelhaWhere stories live. Discover now