CAPÍTULO 6

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O mar estava revolto. O céu cinza e uma tempestade era anunciada pelos ventos intensos e relâmpagos distantes. O navio do capitão An Lepard, Estrela do Crepúsculo, seguia firme, impulsionado por fortes ventos e com as velas bem esticadas. A madeira que constituía a nau rangia com o balanço violento. O convés do navio não era um lugar seguro e ocasionais espirros de água molhavam toda sua superfície deixando-a escorregadia. Ainda assim, não era uma situação que colocava o barco em perigo. O Estrela do Crepúsculo havia atravessado muitas tempestades terríveis e sobrevivido.

Com isso a tripulação parecia bastante tranqüila, mas a tripulação apenas. Quanto aos passageiros, e marinheiros de primeira viagem, aquilo era um pesadelo. Imaginavam que poderiam afundar a qualquer momento.

Mishtra permanecia ao lado de Archibald. O ex-monge Naomir recuperava-se lentamente das lesões em seu corpo e em sua cabeça. Por vezes acordava, bebia e comia pouco, mas não conseguia levantar-se e andar sozinho. Era auxiliado por Gorum, Kyle e Noran quando precisava fazer suas necessidades.

Archibald dormia e o coração da silfa palpitava. A situação lhe trazia memórias confusas de um tempo de que já havia esquecido. Seria um sonho? Ou era verdade o que sua memória sugeria? Teria estado do mar no passado? Teria viajado em navios? Acreditava que sim. Mas quando? Por que não conseguia lembrar-se de detalhes? Segurou a mão de Archibald com firmeza e reclinou-se sobre seu corpo. Sentia frio e tentava captar o calor do rapaz. Era irracional, mas ao colar seu corpo ao corpo dele sentiu-se mais segura. Mesmo que ele pudesse fazer pouco para garantir a segurança de qualquer pessoa.

Adormeceu e em seus sonhos foi visitada por um silfo muito bonito, alto e sempre sorridente. Não era a primeira vez que a imagem daquele silfo lhe vinha à cabeça. Quem seria? Por que não podia recordar-se. Sentiu-se calma e segura na presença do misterioso silfo que possuía longos cabelos castanhos que escapavam de um lenço rubro amarrado ao topo de sua cabeça. Possuía um pouco de pelo na face desenhado em forma de cavanhaque, sinal de que era um silfo maduro, com mais de trezentos anos. Quem era aquele silfo? Qual era seu nome?

Archibald abriu os olhos. Olhou a seu redor e sentiu dor. Franziu a testa e gemeu. Percebeu que Mishtra estava adormecida em seus braços. Uma tempestade. Entravam em uma tempestade. Era dia, mas a cabina estava escurecida, devia estar escuro lá fora também. Era ocasionalmente iluminada por relâmpagos. Tinha dificuldade de reconstituir os acontecimentos. Muitas coisas estavam confusas em sua mente. O que acontecera? Como havia chegado até ali? Não sabia muito bem onde estava. Sabia que estava fora de Lacoresh, sabia que estavam com ele, Mishtra, Kyle, Noran e Kiorina. Kiorina! Sim! Lembrava-se. Foram resgatar Kiorina, mas há quanto tempo? Confusão! Conseguiria ficar de pé?

Moveu Mishtra cuidadosamente deitando-a por completo sobre a cama. Estava muito cansada não acordava apesar de todo o barulho e movimentação. Levantou-se com dificuldade. Apertou o ombro esquerdo que doía intensamente. Suas pernas não estavam exatamente firmes, mas conseguia andar. Abrindo a porta viu-se em um corredor estreito e mal iluminado. Algumas memórias voltavam a sua mente enquanto andava lentamente sem destino. Sua mente estava desorganizada, as memórias não se encaixavam umas nas outras.

Memória! Flores, muitas flores amarelas. Era uma bela primavera. Uma vida cheia de aventuras. E havia o amor. Havia dor. Havia ódio. O amor era Déria, a dor era pela perda de sua família, o assassinato de sua família e o ódio era generalizado, não podia ser focado. Mas apesar do conflito havia Déria. E lá estava ela, correndo feliz pelos campos floridos próximos a Kamanesh.

Já era uma moça, mas não uma mulher. Tinha lindos olhos castanhos, possuidora de um olhar amável e voz gentil que haviam conquistado seu coração. Usava uma coroa de flores amarelas na cabeça.

– Venha Archie! Não consegue me alcançar? – disse a moça ofegante fazendo uma pausa em sua corrida. Archibald havia gravado para sempre aquele olhar, aquele sorriso, aquela beleza jovem, aquele amor...

Então uma mudança brusca. Sua memória viajou para meses depois. A água fria do rio Montiguá em torno de seu corpo. A correnteza forte carregando os amantes, rio abaixo. Déria perdendo as forças. Déria afogando-se. Archibald sentindo uma estranha paralisia. Estava em choque, não conseguia agir. Não pôde alcançá-la. Não pôde alcançá-la! As memórias se misturavam, escutava a voz de Déria dizendo: – Não consegue me alcançar? – Ela morrera. Seu amor morrera. O plano de fugirem para longe e serem felizes acabou quando o pequeno barco virou no rio Montiguá.

Memória!

Escutava vozes. Ainda estava molhado. Estava frio. Ao lado de uma lareira escutava vozes.

– Gorum, que você vai fazer?

– Vamos levá-lo até a catedral, garoto. Querem mata-lo, entende? Ele tem que ser levado para longe.

– Por que ele está assim, Gorum?

– Está em choque garoto. Talvez os monges Naomir possam ajudá-lo. Eu conheço um deles, Irmão Weiss. Ele vai ajudá-lo.

Memória!

Biblioteca do mosteiro dos Monges Naomir. Discutia com o Irmão Weiss. Conversa que daria nova perspectiva a toda sua vida.

– Você é irmão de meu avô? – questionou Archibald indignado.

– Sim. Sorria, somos uma família! – respondeu Weiss ironicamente. Era velho, possuía cabelos brancos e ralos, vestia um manto dos Naomir e apoiava-se num bastão.

– E quanto à história do sangue de silfos? Isso é verdade?

– Infelizmente é sim, e você também carrega sangue sílfico em suas veias.

Lapso!

– Acompanhei você desde seu nascimento. Panejei todos os eventos importantes de sua vida. Conheço você. Sei como vai agir. – anunciou Weiss, confiante e sádico.

– Como alguém pode planejar tudo? Isso não faz sentido!

– Por exemplo, sabe quando seus pais e irmãs morreram? Atacados por bandidos, não foi? E você acha que isso foi obra do acaso?

– Não acredito...

– E sua namorada? Você ia fugir com ela não é mesmo? Se conseguisse eu ia te perder... Então tive de dar um jeito nela.

– Não faz sentido, são mentiras! Você é um mentiroso! Você não tinha o poder!

– Não zombe de mim fedelho! Ou você pensa que o sangue dos silfos trás apenas desvantagens?

Presente! Estava molhado, chovia e o navio jogava violentamente. A dor diminuía. Suas pernas firmes novamente. Livre para movimentar-se. No entanto, sentia-se estranho. Qual era o sentido da vida? Para que viver? A resposta não veio. Seguiu pelo convés até a proa do navio. Seus olhos pareciam fixos em um ponto indefinido. Possuía um olhar aéreo. Não sabia, mas seu objetivo era atirar-se ao mar. No último instante sua mente foi tocada.

“Archibald!?”

Acordou para a realidade e pensou “Mishtra?!” Lembrou-se: “Existe ao menos uma razão para viver!”

Voltou. Molhado, mas vivo. Entrou no corredor de onde saíra.

Mishtra abraçou-o e transmitiu-lhe. “Amor? O que estava fazendo!?”

Archibald respondeu: – Não sei! Não pensava direito.

“Sente-se melhor? E as dores?”

– Se foram. Mas só as dores do corpo. As dores da alma continuam. E doem mais que nunca. – disse e assim que o fez, a confusão havia deixado sua mente. Lembrou-se de toda sua vida em sequência. Todos os fatos. Tudo! Toda sua vida pela primeira vez. – Kiorina! Ela está bem?! – indagou Archibald preocupado.

“Não se preocupe Archie, ela está bem. E não foi molestada por aquele bruto. Foi apenas um blefe a fim de irritá-lo.”

Archibald lembrou-se do episódio. Antes de resgatarem Kiorina, Ruko, um dos cavaleiros que trabalhava para os necromantes, havia dito que molestara Kiorina. Algo que elevou a ira de Archibald fazendo-o entrar num estranho estado de fúria no qual lutava como um louco e era incapaz de sentir dor.

– Tem certeza?

“Tenho! Por favor, fique calmo. Venha descansar.”

Maré VermelhaWhere stories live. Discover now