Depois de um longo e cansativo dia de trabalho, eu estava muito empolgada e o motivo dessa euforia não era simplesmente a primeira sexta-feira ensolarada daquele verão. Em algumas horas receberíamos as melhores visitas que eu poderia esperar e eu estava ansiosa para poder recebê-los no nosso apartamento.
O ônibus parecia estar fazendo o percurso mais lentamente do que de costume, mas eu tinha certeza que se tratava apenas da minha euforia. Desci do ônibus correndo e subi aquelas escadas às pressas, pois sabia que tinha bastante trabalho pela frente. Para a minha sorte, o Zeca já tinha deixado quase tudo organizado, o que me poupou bastante tempo e, quando ele chegou, eu tinha acabado de sair do banho.
– Eles já estão quase chegando e você está parado na frente da TV? – Ralhei.
– Boa noite para você também. – Sorriu. – Eu acabei de chegar. Não se preocupa que nós ainda temos tempo.
Já tinha se passado quase doze anos desde a invasão do hospital e muita coisa tinha mudado nesse meio tempo. Cada um de nós tomou um rumo e, por mais que tentássemos manter o grupo unido, depois de um tempo isso ficou bem difícil. E é por isso que esse encontro era tão importante.
Começou quando o Tião ganhou uma bolsa para estudar em outro país. Depois, uma universidade convidou o Tavinho e a Dani a participarem de uma pesquisa, depois que viu alguns projetos de prótese que eles desenvolveram, mesmo que eles ainda estivessem no ensino médio. Isso obrigou a Iolanda e a Mag – e automaticamente o Joca – a se mudarem para longe junto com eles. Eles sempre voltavam para cá duas vezes por ano para que o Joca visitasse o Túlio e, mesmo que sempre nos encontrássemos nessa ocasiões, não era mais como antigamente.
O Tonho se tornou um cartunista famoso aqui na nossa região. É claro que ele estava longe de ser uma celebridade, mas isso lhe deu uma certa visibilidade e, como a beleza dele nunca foi segredo para ninguém, não levou muito tempo para que ele aparecesse com uma namorada. A princípio a Helô surtou e não aceitou de jeito nenhum a coitada da garota, alegando que o irmão tinha esquecido a Sara. Levou um tempo até ela finalmente aceitar e, quando isso aconteceu, eles terminaram. Ele arranjou várias outras namoradas, mas não durava mais do que alguns meses. No fundo todos nós sabíamos que ele estava procurando uma nova Sara e, enquanto ele pensasse desse jeito, ia ficar sozinho.
Mas de todas as mudanças, a mais gritante foi a perda dos meus poderes e do Bruno. Ninguém conseguiu explicar porque isso aconteceu tão precocemente, mas eu tinha certeza que se dava ao fato de sermos da segunda geração. Como nunca mais vimos a Flávia, não tinha certeza se isso tinha acontecido com ela também.
Eu estava terminando de me vestir, quando ouvi o interfone, corri até lá e permiti a entrada do Bruno, da Helô e do Tonho.
– O apartamento de vocês ficou tão lindo! – exclamou a Helô.
– Você já tinha vindo aqui outras vezes. – Implicou o Bruno, como já era de costume.
– Mas ainda não estava pronto, oras.
Servi alguns aperitivos e bebidas e logo o interfone tocou novamente. Quando vi, nosso pequeno apartamento estava apinhado de gente e eu estava adorando aquilo.
– Como é ser famoso, Tião? – perguntou a Iolanda, a certa altura da noite.
– Eu não sou famoso! Por acaso você já viu esse rostinho em alguma capa de revista? – Ele fez um quadrado com os dedos, emoldurando seu rosto esguio e seu sorriso de dentes separados, o que rendeu boas risadas. – A verdade é que quase ninguém se importa com música clássica, o que eu acho uma pena. Mas se você quer saber como é a vida de uma celebridade, devia perguntar ao Tonho. Além de conhecido, cada semana ele aparece com uma garota diferente.
– Isso quando ele não aparece com mais de uma por semana. – Zombou a Helô. – O Bruno é prova de que a rotatividade de namoradas do Tonho é frenética.
– Por que é que em todos os encontros vocês falam sobre as mesmas coisas? – Contestou o Tonho, fingindo irritação. – Vamos falar sobre coisas novas. O Tavinho e a Dani sempre ficam de lado nas nossas conversas.
O Tavinho cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha.
– Essa é uma ótima maneira de mudar o foco da conversa, Tonho, mas se você tem tanto interesse nas nossas pesquisas...
– Nem vem, Tavinho. – Interrompeu a Dani, com cara de tédio. – Eles não têm o menor interesse nas nossas pesquisas.
– Na verdade, eu tenho sim – eu disse. – Essa sua prótese aí... dá pra fazer uma para o Zeca?
– Para mim? Eu não preciso de nada disso. Estou muito bem, obrigado. – Devolveu, fechando a cara.
– É claro que você está bem. – Rebati. – Assim você sempre tem uma boa desculpa para não lavar a louça, né?
– De todos os meus planos, tenho o maior orgulho em dizer que pelo menos esse deu muito certo. – Sorriu.
Apesar das risadas, um clima esquisito tomou conta do ambiente. A simples menção do plano nos levou a lembrança da Sara e da falta que ela fazia naquele ambiente. Sempre que tocávamos nesse assunto, a atmosfera do lugar se tornava austero e, desta vez, resolvemos mudar de assunto.
– E quanto ao médico? Nunca mais tiveram noticias dele? - perguntou o Joca.
– Pelo menos nisso tivemos sorte – respondeu o Bruno.
O sumiço do médico nunca nos convenceu. Passamos muitos anos tomando o maior cuidado, olhando para todos os cantos e desconfiando de todo mundo, mas nunca mais tivemos notícias ou sinais daquele monstro e, com o passar do tempo, passamos a esquecer um pouco essa paranoia. Nunca soubemos se ele morreu ou não, se arrependeu-se de seus crimes, ou qualquer outra informação.
– Tomara que ele tenha morrido – disse a Mag, dando de ombros. – E que tenha sofrido muito.
Mesmo que parecesse errado, todos concordamos. Depois de tanto tempo ainda carregávamos sequelas daquele lugar. Como se já não fosse o suficiente, depois que tudo acabou, ainda fomos obrigados a fazer um procedimento de esterilização, para que não tivéssemos filhos. Eu sei que se tratava de um procedimento de segurança, para que essa geração mutante se extinguisse para sempre, mas alguns de nós sentiram muito essa mudança, especialmente a Mag e a Iolanda.
– Aquele hospital nos trouxe muitas tristezas e sofrimento, mas quando eu paro para pensar nisso, sempre lembro que jamais teria conhecido vocês se não fosse por todo esse experimento. – Concluiu a Iolanda, sorridente.
– Então você está dizendo que queria passar por tudo isso de novo? – Provocou o Tião.
– É claro que não, mas sempre temos que ver as coisas pelo lado positivo. E o lado positivo é que vocês são a melhor família que eu poderia ter.
Ela tinha razão.
A vida tinha sido muito injusta com todos nós, isso era inegável. Mas ela tentou nos recompensar com as pessoas mais importantes e vê-los todos reunidos novamente era a maior felicidade que eu poderia ter.