L2|| XV. "Inspiração"

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Desenhando minha forma no ar. 

Meus olhos ardem em vermelho, secos de tanto chorar. Ainda assim, a conjeturo em silêncio, vendo uma pequena luz começar a brilhar do centro do desenho dela, cintilando cada vez mais forte e contrastante, aumentando gradualmente de tamanho. 

Tanto que acaba temporariamente me cegando.

Uma pequena explosão se dá e mesmo comigo longe, a rajada de vento que cria acaba por me derrubar de costas no chão. 

Quando me re-ergo não posso acreditar no que meus olhos veêm. 

Outra... eu

— ... O quê?  — murmuro assustada. 

— Sim! — as aves gorjeiam felizes com o feito. — Criamos uma criatura! Criamos uma criatura! — elas batem suas asas num vôo estático sobre os ombros da deusa ainda conectadas com o estranho esparadrapo, enquanto eu apenas fito minha exata cópia que tem meus cabelos e minha jardineira de flores. — Uma nova Caliandrei! Uma melhor Caliandrei! Foi bem mais fácil do que pensei! — as aves revezam as falas entre si. — Uma fada Caliandrei de Cardórie!

A nova Caliandrei fica parada e eu me levanto do tombo absolutamente abismada com o que vejo. Seria um truque de magia, uma ilusão? Sinto a mesma curiosidade que senti quando vi a Sombra pela primeira vez: uma vontade mórbida de tocá-la, descobrir se eu vejo o que vejo mesmo e do que é feito, mesmo surpresa e temerosa ao mesmo tempo. 

Quando tento me aproximar dela, ela vira seu rosto para mim. Instintivamente, me assusto ao me olhar bem nos olhos e retraio meu corpo, dando alguns passos para trás. 

Lembro-me que a menina-deusa disse que alguns deuses se inspiram nas criações um do outro para fazerem suas próprias. Tudo bem mas... não assim, certo? Se Guendri e o deus do mundo humano usaram moldes similares para fazerem os corpos de fadas e humanos e muitos outros seres, ainda assim os indivíduos provenientes dessas formações são diferentes entre si, com caracteristicas únicas que se misturam em combinações diversas.

Embora eu não tenha me criado, me sinto roubada de minha essência de uma forma revoltosa, violada do que me faz ser eu.

— Como você conseguiu fazer isso? — mesmo em grande crise interna, pergunto. Há pouco ela mal conseguia criar uma flor completa, com odor ou cor... como, do nada, resolvera e fora capaz de fazer uma cópia exata de mim?

— Eu não lembrava exatamente de como era a flor que vi em Lhira... Por isso não saía certo. Então resolvi recriar vendo o que quero fazer. Ora, você estava certa, fada de Adaris... eu sou uma deusa! Eu ouvi seu choramingo, achei que era isso que queria: que uma deusa respondesse seu clamar! — ela argumenta como se fizesse sentido. — Eu crio. Essa é minha função. E preciso de uma criatura. — a ave da esquerda diz. — E agora tenho!

— Mas você disse que não queria criaturas! Que eram complicadas e...

— Mudei de idéia. — me corta, enquanto nós duas cercamos e observamos a minha cópia parada no lugar. — E observe a minha Caliandrei. É perfeita! Sem magia que não lhe pertence. 

Meu cérebro queima enquanto penso comigo quão malditamente instáveis alguns deuses podem ser.

— Mas você não pode me copiar, com ou sem meus defeitos. Você nem me perguntou se podia fazer isso! — aponto para meu reflexo em carne. Me lembro das doces palavras de Flavio quando nos encontramos da última vez no mundo humano, comentando o que considerava ser minhas peculiaridades. — Eu sou única. — repito o que ele me disse.

Tenho impressão de que a deusa se faz de desentendida propositalmente, apesar de sua face não me dizer muito. 

— Criações... acham que são únicas! — a gralha gorjeia escandalosamente. — Espero que a minha Caliandrei seja melhor e não se banhe em prepotência. Com minha criação, não cometerei os erros de Guendri. A deusa me recompensará grandiosamente!

— A deusa...? — eu não sei o que fazer. Eu não sei qual é a dessa menina, apesar de suas respostas evasivas e algumas grosserias quanto a minha aparência e falta de conhecimento em certas áreas, não me parecia hostil. E não que pareça agora, mas... o que quer com isso? 

Droga! Eu até considerei ficar em Cárdorie, mesmo com a anfitriã estranha, mas estou em um baque tão grande ao me ver e me encarar num espelho vivo, que não sei se ficar aqui é uma boa idéia.

Eu me olho. E vice-versa.

— Ela é só como eu fisicamente ou...

A menina-deusa dá de ombros. 

Eu já não estou pensando boas coisas de deuses e essa experiência que tenho agora com uma de perto apenas confirma que são os seres mais instáveis, coletivistas e cruéis que existem. 

— Vamos descobrir! Pergunte algo a ela.

— Perguntar... — resmoneio, sem saber se deveria tentar ou não. Com receosa curiosidade, me aproximo de mim. — Q-qual o seu nome?

Minha cópia vira seu rosto para mim e sorri acaloradamente, mas não responde.

— Qual é o seu nome? — repito mais alto.

De repente, o sorriso dela se desmancha. Ela começa a abrir a boca que vai se alargando tanto, mas tanto que me pergunto se vai rasgar a pele de seu rosto. Por trás dos lábios vermelhos, enormes dentes pontiagudos como as presas de um animal começam a aparecer junto com uma baba espessa que rola por ambos os cantos de sua boca. Seus olhos castanhos como os meus, agora são completos círculos negros e sem íris. 

— O que está acontecendo? — pergunto a menina-deusa que achei estar atrás de mim, mas quando olho não a vejo em lugar nenhum. — Deusa! Deusa! — eu a chamo mas nada de ela aparecer. 

E quando ouço minha cópia começar a rosnar baixinho, me viro para ela novamente. 

Num sorriso depravado e cheio de baba, ela rosna insanamente.

Mas o rosnar se multiplica num coral. Uma, dez, cem vozes escapando entre cerrados dentes afiados...

Quando me dou conta, estou cercada de minhas cópias!

Para meu desespero, a primeira delas tenta me atacar. E sem outra saída ou tempo de pensar duas vezes, numa metafórica piada de mal-gosto, começo a correr de mim mesma.  


ADARISWhere stories live. Discover now