Capítulo 1 - FILIPE

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FILIPE



"Não andem ansiosos por coisa alguma,

mas em tudo, pela oração e súplicas,

e com ação de graças, apresentem seus pedidos a Deus.

E a paz de Deus, que excede todo o entendimento,

guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus."

Filipenses 4:6-7


Aos 11 anos de idade...


De pé, na grande sala da paróquia, padre Túlio apresenta duas pedras: uma pedra comum na mão direita e uma pedra de gelo na outra.

— O que estão vendo aqui? — pergunta.

As respostas na sala da catequese são as mais óbvias, mas eu já estava careca de saber que o padre gostava de brincar com a gente. Óbvio que não era o óbvio!

— O que podemos aprender sobre a fé ao olhar essas duas pedras tão simples? — pergunta de novo.

Fico quieto. Enquanto todo mundo conversa e ri com a situação, percebo o gelo derreter e escorrer entre os dedos do padre Túlio.

Nesse momento, eu mato a charada e levanto a mão bem alto com animação.

— Filipe...

— Eu quero ser a pedra que não derrete, padre!


***


Entro no banheiro da paróquia e tranco a porta, sentindo as pontas dos dedos das mãos dormentes. Abro a torneira com pressa e jogo água em meu rosto, respirando fundo e tentando acalmar o meu coração. A mudança tão esperada estava começando.

O meu eu assustado me olha de volta no espelho. Alguns fios brancos despontam sobre meus cabelos escuros, mesmo eu tendo recém completado 30 anos. Posso contar cinco deles espalhados no topete de lado, desarrumado. Era uma das heranças genéticas que herdei da minha mãe.

Eu não deveria me sentir tão atordoado. A minha transferência era para ter acontecido há meses.

Deixar a cidade onde nasci e cresci era algo que eu sabia que aconteceria. Faz parte da ordenança a transferência. Cortar laços e se entregar por completo é necessário.

Fui ordenado a sacerdote há apenas oito meses e, naquela mesma época, eu deveria ter sido designado para outro local, porém, dias depois, a saúde da minha mãe piorou, me fazendo continuar ao seu lado. São raros casos como esse, claro. Mas o meu pedido à igreja foi atendido. Ela não tinha mais ninguém.

Esse foi um dos meus receios antes da minha escolha: ficar longe da minha mãe que sempre foi muito solitária.

Ela faleceu dois meses após a minha ordenança e a falta que faz ainda é bastante dolorosa.

Minha mãe foi uma mulher sofrida. Ainda recordo do pouco que contava sobre sua história e de como chegou ao Rio de Janeiro. Seus pais já eram falecidos, estava sozinha, grávida, sem formação, sem perspectiva. Eu já tinha entendido a parte de ela ter sido abandonada mesmo sem que ela explicasse. Começou a trabalhar como empregada doméstica em casas de família da zona sul da cidade e assim continuou até adoecer.

QUE ASSIM SEJA, AMOROù les histoires vivent. Découvrez maintenant