"Vê". Detesto quando me chamam de "Vê". Já estamos íntimos assim ou ele está bebado? Não importa. Vindo dele, posso aprender a gostar.

— Eu trouxe isso. — Mostro a garrafa que Bauer me deu.

Ele estuda o rótulo, admirado e me agradece. Seu braço sai de meus ombros mas sua mão segura a minha e me puxa para a cozinha, passando por ainda mais pessoas. Não sei como ele consegue enfiar tanta gente neste cubículo, mas tento sorri para todas com as quais troco olhares.

Na cozinha, ele começa a preparar uma caipirinha.

— Que bom que veio. Eu achei que não viria. — Ele comenta e eu não respondo. Se ele não fosse lindo assim eu não viria mesmo. E agora apenas o olho, tentando entender como alguém é tão lindo amassando limões. — Você tá sempre trabalhando, raramente te vejo. — Continua.

— Tenho que trabalhar né, não é barato morar aqui. — Sou honesta.

— Não é mesmo. — Ele me dá a caipirinha. — Aqui tem pizza e aqui... — Ele levanta a tampa de uma caixa de papelão. — Esfihas. Pegue o que quiser. Então... — Ele brinda sua garrafa de cerveja contra meu copo plástico de caipirinha. — Tá gostando da cidade?

— Amando. É tudo o que eu esperava e mais um pouco.

— E o trabalho? Você é secretária, certo?

— Sim, trabalho na Bauer Investimentos. É uma pequena empresa, sou secretária do dono. Nada demais, mas toma bastante do meu tempo. Eu gosto de lá.

— O chefe é legal? Você gosta dele? Fala sério né, ninguém gosta do chefe. — Dou de ombros com um sorriso educado. Se eu gosto do meu chefe? Me pergunta qual é a hipotenusa do triângulo retângulo que é bem mais fácil de responder. — Que bom que achou emprego Vê, eu lembro a primeira vez que te conheci você ainda tava procurando. Fico feliz que finalmente encontrou porque não tá muito fácil. — Sua voz agora é alta pois a música e as vozes começam a tomar conta do espaço. — Daniel! Chega aí! — Ele chama por alguém atrás de mim quando o vê na entrada da cozinha. — Vou te apresentar meu amigo.— Lucas me diz e um cara barbudo e tatuado se junta a nós. — Verena, Daniel. Daniel, Verena. Seus novos vizinhos.

— Ah, você que tá no apartamento da chata da Dona Helena agora! Puta merda, até que enfim aquela velha coróca dos infernos deu o pé daqui. — Nos cumprimentamos e ele vira para Lucas. — Que que tem pra beber, alemão?

— Breja na geladeira, a Laís trouxe umas cinco vodkas, e a nossa nova vizinha aqui trouxe essa cachaça de rico. — Lucas dá a garrafa a Daniel.

— Carai. — Daniel arregala os olhos. Eu não sabia que era cachaça de rico, nem sabia que era uma marca conhecida. Eu devia ter prestado mais atenção no que Bauer dizia sobre a cachaça ao invés de quão próximos estavamos. — Posso experimentar? — Daniel pergunta.

— Claro! Me diz o que acha.

Daniel vira uma dose e parece gostar.
— De-lí-ci-a! Aonde você achou essa aqui?

— Meu patrão me deu pra trazer aqui e saber se gostam pois ele pensa em investir nela.

— Pode dizer pra ele que tá aprovado. — Daniel bebe mais uma dose e depois abre uma cerveja. — Que sorte que a nossa, alemão. Nos livramos da velha chata e no lugar conseguimos uma gata com cachaça boa de graça. — Suas cervejas brindam e eu rio. Rio por que chamar alguém de "gata" é tão brega. 

Lucas ri também.

Riu por que concorda com Daniel ou não? Gostaria de saber...

— Ela era chata assim, é? — Tento continuar a conversa.

— Dona Helena era uma peste. — Daniel responde. — Reclamava de tudo. Meu apartamento é embaixo do seu, então você ouve tudo o que faço e eu posso ouvir você. Ela reclamava do meu vídeo game, mas eu tinha que gostar do forró que ela botava pra tocar alto todo fim de semana.

Não sei se é por quê passo mais tempo fora de casa ou por que sou meio surda, mas não ouço nada vindo do apartamento de baixo. E agradeço por isso. Ninguém respeita o ouvido alheio em cidade grande.

— Verdade! — Lucas confirma o relato de Daniel. — Ela já chamou a polícia em duas das minhas festas. E olha que eu não deixo passar das dez da noite, normalmente vamos pra alguma balada ou barzinho, em respeito a todos os vizinhos. Já ela ficava no forró e quando se arrependia, colocava música de igreja. 

Eu gargalho sem querer. Em Cunha tem alguns desses.

— Eu não conheço os outros vizinhos. — Acabo de reparar.

— Tem um casal ao lado do meu apartamento e o outro está vazio. A galera muda daqui o tempo todo. A gente não muda por que o preço é bom comparado com o resto da Barra Funda e é perto do nosso trampo. — Daniel comenta.

— Vocês dois trabalham aqui perto? — Reparo quando ele diz "nosso" trabalho.

— Sim. E no mesmo lugar. Eu e esse muleque aqui tâmo junto desde o primário! — Daniel me responde. — Moravamos juntos também, mas mudei antes que a gente acabasse se matando. Faculdade junto, trabalho junto. Tudo junto. Vamos acabar casando, né meu amor?

— Vai se ferrar, Daniel. — Lucas responde. Alguém o chama e antes dele sair da cozinha. — Já volto, okay? Não some, Vê. — Diz para mim e eu sorrio de acordo. 

— Lucas me falou que você é de Cunha? — Daniel continua a conversa depois que Lucas sai.

Meu sorriso morre e eu não falo mais nada.

Está chegando aquela inevitável parte da conversa quando conhecemos novas pessoas, a parte onde nos enchemos de perguntas sobre onde viemos, nossa família, ou onde crescemos.

A parte que eu não gosto muito de falar sobre porquê não há muito para se falar.

E isso me incomoda. Como falar do seu passado quando você não tem um?

 Como falar do seu passado quando você não tem um?

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