Furacão

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Um Furacão havia passado em mim e levado as migalhas que ainda haviam de minhas forças.
Extraído tudo, retirado tudo.
Já não tenho neste momento força alguma, ânimo algum...

Estou sentada sobre o carpete refinado deste quarto escuro, de frente para o grande espelho do armário, no qual este reflete vagamente traços abatidos e exaustos, junto a um olhar suplicando por ajuda.
Eu estou outra vez um caos. Um tremendo caos.
Quebrei-me por inteira e tornei-me inúmeros cacos. Algo irreversível. Impossível de obter-se novamente. Mas embora obtenha-se mais uma vez, faltará pedaços. Faltará cacos. Não serei como antes. Não serei completamente inteira.

Talvez eu tenha enganado-me, como sempre, pela trigésima, quadragésima, quinquagésima vez... NÃO CONSEGUIREI SUPORTAR, LIDAR, PASSAR, ACOSTUMAR COM A AUSÊNCIA DA LEMBRANÇA! IRÁ DOER E A DOR SERÁ TAMANHA, QUE TUDO VOLTARÁ, EMBORA EU TENTE INTERMINAVELMENTE NÃO LEMBRAR! É o meu passado, mesmo sendo árduo. Vivi tudo aquilo, passei por tudo... Eu sei que eles deveriam dar-me força e encorajamento, não uma tremenda fraqueza, mas fazem parte de mim.

Porém, algo sussurra que eu não deveria e novamente outro algo súplica que eu deveria, e eu estou dividida. Não vejo outras opções.
É somente sim ou não. E eu já fiz o sim.

Mas o que levou-me a pensar que dor alguma sentiria com tudo o que fiz neste dia?
Iludir-me completamente. Enganei a mim mesma perfeitamente.

Eu não estou preparada. Não estava preparada para escrever tais palavras, para esquecê-los. Mas fiz. Estou fazendo.
Uma hora destas Pedro já deve ter lido o e-mail.
Eu Sinto. Porque algo doeu profundamente.
Em alguns dias, semanas, não sei, será a vez de Austin. E a dor será ainda mais intensa. Daqui a alguns minutos será a vez de Karla... E eu morrerei um pouco no instante em que o fogo se alastrar pelo papel e fazer virar cinza toda a minha dor. E depois já não mais sentirei saudades. Depois já não mais haverá Karla, senão em minha mais intensa e profunda lembrança, mas irei conter-me.

Porém, embora tendo em mente que seria árduo desde o momento em que decidi sair dos braços de Eliza, porque suas palavras mesmo que fossem de malgrado para os meus ouvidos, eram a verdade que meu coração precisava e dirigir-me para o meu quarto e logo depois roubei por alguns minutos o Notebook de Audrey, fiz. Fiz porque sabia que teria este momento de queda. Fiz porque sabia que passaria pela queda, levantando-me mesmo que vagarosamente, mas tornaria-me um pouco mais forte. Fiz porque queria conhecer um lado meu que para mim não existia. Fiz porque sabia que iria aprender, mesmo apanhando, a deixar algumas pessoas. Sejam elas as mais importantes de nossa vida. Fiz porque sabia que aprenderia que minha felicidade depende de mim.
Fiz e dei-me este momento ainda neste quarto escuro de frente para o espelho, porque preciso disso.
Preciso ver o meu reflexo, ver minhas lágrimas mornas descerem pelo meu rosto e perceber que tudo isso é para mim. Que tudo o que aconteceu desde agora tinha realmente que acontecer. Que eu tinha que deixá-los. Que eu tinha que deixar uma parte minha para encontrar uma outra que irá fazer-me bem.
Preciso ver-me para ter a certeza de que sou realmente uma pessoa com demasiada fraqueza quando se trata de problemas dado pela vida.
Talvez algum dia tudo isso se encaixe. Talvez algum dia eu sorria em meio as lágrimas em alguma escuridão... Nada acontece por acaso.

- Já que despedi-me de todos aqueles que ocuparam um espaço enorme em meu coração, agora é a hora de despedir-me de mim mesma.- Suspirei levantando-me.- Mudarei. Não mais serei este eu. Para mim não será dificultoso mudanças. Tive duas personalidades diferentes, mais uma será fácil de se conseguir. Não é completamente mais uma, mas sim uma mistura das outras duas.- Sussurrei olhando-me fixamente pelo espelho.- Isso é irônico... Estou falando comigo mesma como se outra pessoa estivesse ao meu lado.- Sorrir torto. - Bem, Maryanne... - Suspirei - Eu nunca gostei de você. Principalmente do nome. Preferiria Helena, Beatrice.
Sempre te achei rude, estúpida, estranha e antipática demais. Você é a garota que eu não gostaria de ver em ninguém. Nem em mim mesma, mas embora tentasse mudar, você nunca saia de mim. Mas confesso que já gostei de você. Não agora, há muito tempo. Quando você era menor. Quando você era apenas uma criança. Eu gostava de ser você. Te achava tão meiga, sagaz, simpática. Mas aí você cresceu, levando-me ao intenso desgosto de ser você.
Você cresceu e mudou. Mudou radicalmente. Ou te mudaram. Te mudaram porque para eles você não se enquadrava. Quando digo eles, refiro-me a todos aqueles que estiverem em sua vida. Em nossa vida. Desde os colegas do Jardim de infância e de seu bairro, aqueles nos quais nunca trocaram brinquedos com você e negavam sua entrada no pique-esconde até aqueles do colegial, uma fase extremamente dolorosa, que te olhavam com desdém simplesmente por não ser como eles.
Lembro que eles nunca te convidaram para sentar-se no refeitório ou para fazer parte de seus grupos nos trabalhos de colegial. Até mesmo outros grupos, como o de teatro, xadrez, vôlei, CDF, emos... Nenhum trocava palavras com você. Maryanne, você não cabia em nada. Isso é tão arrasador, angustiante. Seu grupo era somente você, você e você.
Mas não é atoa que quando ingressou-se no ensino médio sempre sentava-se no gramado debaixo daquele Ipê azul e não é atoa que sua cor predileta é azul. Porque quando as folhas do Ipê caiam sobre o chão, você agia de tal forma que parecia estar no céu. Com isso passava os minutos do intervalo em longos devaneios. Nunca disse isso a ninguém, mas eu sei. Isso levou-a a acostumar-se com a solidão.
Não somente os humanos do Jardim de infância e do colegial mudaram-a, mas também aqueles no qual deu amor e talvez não tenha recebido. Não é fácil dar amor de vez. Dar todo aquele amor que talvez  você não tenha, ou mal sabia se tinha e depois não recebê-lo. Lidar com o amor não recíproco é desapontador.
Mas infelizmente eles também te mudaram. Te mudaram e tiraram um pouco de seu amor, tornando-a fria.
Embora ainda tenha amor em você, embora ainda se entregue, não tem confiança. Você, Maryanne, não confia em si mesma, assim como vejo que não confia tão facilmente nos outros. Entretanto quando confia, confia de forma demasiada, entregando-se inteiramente, algo que não deveria. E logo você cai. E o tombo é tão grande, tão drástico, que mal consegue se reerguer. Mas eu sinto muito. Sinto muito por tudo. Sinto muito por ser você. Sinto muito por ter passado por tudo o que passou e pelo que irá passar
Sinto muito por aquelas idas daquelas pessoas. Sinto muito por aquelas notícias. Te magoaram, eu sei. Magoaram-me também. Magoaram muito. Sinto muito por aquelas lembranças, por aquelas momentos. Sinto muito por ter ouvido algumas palavras que eram necessárias de ser ouvidas, mas quem disse não pensou que tais palavras traziam consigo punhais. Sinto muito por ser tão pequena, tão imatura, mas ter que se tornar mentalmente uma adulta tão depressa para cuidar de si própria, pois não havia e não há mais ninguém que possa fazer isso por você. Sinto muito por ter crescido. Sinto muito por ser disléxica. Isso te afastou de muitas coisas. Te tirou oportunidades.
Sinto muito pelas suas percas. Não são e não foram fáceis...
Agora desculpe-me. Desculpe-me por te odiar. Por não gostar de ser você.
Eu queria, mas não consigo. Vivo de forma infeliz e você sabe disso. Entretanto desculpe. Desculpe por todas as vezes em que ingerir aquelas bebidas. Desculpe por todas as vezes em que te feri. Desculpe por aqueles cortes. Desculpe por gerar esses pensamento que não te agradam.
Desculpe por desmoronar tão facilmente. Desculpe por tentar ser alguém que não sou e falhar. Desculpe por te submeter a isso. Desculpe por extrair de seus olhos tantas lágrimas e privar seus lábios de sorrisos. Desculpe por não seguir o caminho ideal e ir sempre para a escuridão. Desculpe por cair e te levar junto. Desculpe por não consegui voltar. Desculpe por não dizer o que deveria ser dito em alguns momentos. Desculpe por amar  quem não deveria. Desculpe por ter feito-a sentir dor, seja ela física ou emocional... Não tinham outras opções, ou se tinham, meus olhos não viam. Desculpe, mas você irá virar pó.
Mas também obrigada. Obrigada por ter concedido-me certas pessoas. Por ter concedido-me certos risos. Por ter concedido-me certos momentos.
São pouco os obrigados, mas em alguns instantes eu fui feliz sendo você. Mas jamais te escolheria para alguém. Adeus, velha Maryanne. - Sussurrei. De repente peguei um livro que estava sobre o chão e joguei-o até o espelho que transformou-se em cacos.
Virei-me para onde havia alguns retratos. Rasguei um por um, a menos de minha mãe e de meu pai. Rasguei algumas outras fotografias. Quebrei porta-retrato por porta-retrato. - Vocês já não mais pertencem-me. Já não mais são os meus momentos! - Joguei o último sobre o chão e pisoteio.

Desventuras De MaryanneWhere stories live. Discover now