44 - Paraíso

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Depois de descansar algumas horas, Gael e eu seguimos viagem. O dia já estava nascendo, mas a luz não penetrava completamente no pântano, deixando a atmosfera sempre sombria. O cheiro de enxofre ia e vinha, mas o sibilar da serpente estava lá, sempre que eu prestava atenção nele.

Seguimos na direção contrária à humidade. Quanto mais seco, mais distantes do pantanal. Comecei a sentir um cheiro gostoso, frutado e doce. Parecia vir de algumas plantas pelas quais passávamos. O solo ficava cada vez mais firme, o ar, cada vez mais seco, e o ambiente, cada vez mais iluminado. A vegetação começou a ficar colorida, bordada de flores até se transformar por completo em um magnífico jardim.

Flores em cachos gigantescos formavam acima de nós uma chuva lilás e abaixo, um tapete violeta.

— Olá. — a voz doce e baixa nos surpreendeu. Uma mulher linda, esguia e praticamente nua, sorria de forma angelical. — Sejam bem vindos ao paraíso.

Era dela o cheiro! Muito bom. Mais parecia uma fada, pequena e delicada. Um pouquinho mais de roupa que não faria mal nenhum! Com ramos, folhas e flores em lugares estrategicamente presos, ela caminhou em nossa direção.

— Parecem exaustos, coitadinhos. — parecia que ia começar a chorar a qualquer momento. — Que tal um banho em águas termais e um almoço delicioso?

Os sininhos da voz dela cantavam quando ela falava. Alguma coisa ligou dentro do meu cérebro e outra no meu estômago. Fome.

— Precisamos ir para o norte. Procuramos as brumas. — Gael falou pela primeira vez.

— Que maravilha! — ela bateu palmas. — Então estão quase lá. Vão chegar antes de o sol estar no centro do céu.

— Você conhece o caminho? — a minha voz era grossa e áspera em contraste com a delicadeza da dela.

— Mas é claro minha pequena flor! — ela gravitou ao meu redor movimentando as mãos que fizeram vinhas do seu vestido deslizar pelas madeixas do meu cabelo. Ela arfou quando viu o desnível de um palmo no comprimento. — Mas quem poderia ter feito tamanho estrago em tão lindas madeixas negras como a noite?

Dei uma risada da expressão dela. Conheci pessoas ficavam do mesmo jeito frente a uma tesoura de cabeleireiro.

— Foi lá atrás no pântano. — respondi. — Umas criaturas viscosas.

— Aqueles diabretes! — foi a expressão de raiva mais doce que eu já testemunhei. — As piranhas do brejo, sempre tentando morder as visitas. Aquelas criaturas não têm nenhuma etiqueta! Não sabem como tratar uma flor como você, meu bem. — os sinos tilintaram outra vez e seus ramos acariciaram minha bochecha. — Então, têm alguns minutos para uma pausa?

Gael e eu nos entreolhamos e assentimos. Um banho e alguma comida não nos atrasaria tanto.

Mademoasele e monsiur. Sigam-me, s'il vous plaît.

Nós a seguimos. O cabelo louro como trigo, trançado com flores até abaixo dos quadris, oscilava segundo o movimento de seus passos descalços. As plantas ao redor foram ficando cada vez mais exóticas e diferentes. Algumas pareciam jarros, ou um cone invertido. No topo, babados formavam um chapéu. Lindas! O cheiro era semelhante ao da nossa anfitriã, só que bem mais fraco.

— O seu jardim é muito bonito. — declarei. — Essas flores são tão coloridas e cheirosas!

— Ah! Espere só até ver os meus bebes! — ela sorria para mim, cheia de orgulho. — São simplesmente adoráveis! — os sinos soaram. — Crianças, venham conhecer nossas visitas! Hoje teremos prato principal e sobremesa. Nossos amigos merecem o que temos de melhor para oferecer!

Ao nosso redor plantas começaram a se locomover. Flores parecendo balões cheios de água, com a boca aberta para cima, penderam das árvores. Elas começaram a fazer barulhinhos, como o piado dos passarinhos, abrindo e fechando a boca. Um som brilhante e cristalino, também parecido com risadas.

— Devo supor que estes sejam os bebes. — Gael fez carinho na planta que estufou mais a barriguinha. Outras foram reclamar seus cafunés de direito. Ele riu e afagou todas elas.

— Estes são meus primores! — a voz amável e cintilante falou.

— São incríveis! — algumas vieram me inspecionar, me cheirando e me fazendo cócegas. — Estão vivas, como os animais.

— Agora, crianças, nossos convidados precisam descansar e se lavar. Vocês podem brincar com eles depois. — as plantas fizeram muxoxos de reclamação, mas obedeceram à mãe. — Sem resmungos! — ela tentou fazer uma cara feia, mas não conseguiu! — Vamos continuar. — se dirigiu à nós.

— Não nos disse o seu nome. Eu sou Alma e ele, Gael.

— Oh! Quanta grosseria a minha. Não recebemos visitas há tanto tempo, que já estou me esquecendo das boas maneiras. Lilith. — algumas gavinhas e flores se agitaram em seu traje rendado. — Eu sou Lilith.

A vegetação não parava de crescer à nossa volta. Os sinos não paravam de tocar na minha mente. Gael e Lilith caminhavam à minha frente. Por onde corria os olhos podia ver os bebês dela, juntamente com os jarros exóticos. Todas tinham chapéu, alguns estavam levantados, outros abaixados.

Vários passarinhos chilreavam acima de nós. Um canarinho pousou em um jarro aberto para beber a água do interior. As plantas se moviam com a nossa passagem. Alguma coisa cutucava o meu cérebro. Os sinos tocavam. Tinha alguma coisa familiar naquelas plantas. Mas o que? O que era? Batom! A borda das plantas parecia um sorriso em batom vermelho. Voltei os olhos para o passarinho que bebia água. O cone, antes aberto, estava fechado. Uma pontinha amarela estava presa entre seus lábios carmim. Penas amarelas de um passarinho amarelo.

— Gael... — a minha voz falhou.

A fada olhava para mim com uma intensidade faminta.

— Você está bem, doçura? — os sinos falaram.

Eu somei dois mais dois. Os sinos que cutucavam o meu cérebro toda vez que ela falava. Não eram sinos. Era o mesmo som que eu ouvia lá atrás no pântano. O sibilar de uma serpente.

Lilith, a serpente do paraíso, era uma planta carnívora.

Lilith, a serpente do paraíso, era uma planta carnívora

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Olá a todos! 

A treta vai começar de novo! Bjos e bom feriado a todos!

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora