38 - Travessia

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O fluxo da cachoeira espalhava um barulho reconfortante e tranquilo pelo ar.

"Onde as águas tocam o chão,Dois mundos em colisão.Olhe com a magia do coraçãoE os portais se abrirão."

Era mesmo possível que aquilo fosse a entrada para um mundo mágico de fantasia? A rosa-dos-ventos sobre a minha barriga se aqueceu. Lar. É o que ela estava me dizendo.

A noite era nossa amiga. Ela encobriria a nossa chegada, do contrário, teríamos de imediato, inimigos em nosso encalço.

— Por trás daquela cortina nos espera o início... — Elisa observou a cachoeira. — ou o fim. — ele deu o primeiro passo em direção ao portal.

Lembrei do que Gael havia me dito "Você precisa ter fé. É isso que significa olhar com a magia do coração" e quando os meus pés tocaram a água, não afundei. Era como se existisse uma camada de vidro sob a superfície, nos conduzindo diretamente à cortina de água que se abriu instantaneamente.

Espiei a imagem oculta do outro lado. A noite encobria o mundo. Um mundo mágico, escondido sob o manto líquido de uma cachoeira.

Fui a última a cruzar a fronteira e de repente, uma dor súbita me atingiu de forma aguda e violenta.

Eu me curvei, caindo de joelhos, levando instantaneamente as duas mãos à tatuagem.

A rosa-dos-ventos sob minha pele queimou com um fogo insano. Eu podia ouvir as vozes de Gael e Elisa, mas elas estavam distantes demais. Eu sentia como se estivesse sendo marcada por um ferro em brasa.

Alguma coisa selvagem começou a percorrer todo o meu corpo, circulando no meu sangue. O mundo se transformou em uma tela em branco a se encheu de sons. Imagens começaram a girar ao meu redor, passando pelos meus olhos com a velocidade da luz.

Eu vi a Terra, as pessoas ao redor do globo. Eu vi os primeiros guardiões sendo assassinados, os atuais sendo caçados. Gritos. Risadas. Milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. Eu vi o Homem. O sangue e a guerra. E vi a humanidade. O amor e a família.

— Elisa, o que está acontecendo com ela?

— Eu não sei, Gael, eu não sei!

O desespero em suas vozes conseguiu me tocar. A tela em minha mente se apagou. A minha alma regressou ao meu corpo.

— Estou bem. — foquei no olhar verde dourado desesperado diante de mim.

— Alma? — Gael me abraçou apertado. — O que aconteceu?

Não precisei verificar para saber que a minha tatuagem estava completa. Eu nasci. Eu vi o mundo. Eu sou o portal. Os meus olhos são os olhos dele.

— A magia acordou dentro de mim. — me coloquei de pé. — Ela está em casa agora. — olhei ao redor. Eu pertenço a este lugar.

E então percebi que continuávamos sob a água sem afundar, mas a cachoeira tinha desaparecido. Nós estávamos no meio de um mar tranquilo, sem ondas.

— Nós temos que ir agora. — Gael apertou a minha mão, ainda um pouco preocupado.

Começamos a caminhar rumo à terra firme. Voar seria mais rápido, mas chamaria muita atenção. Passar desapercebido era fundamental para um grupo de traidores que tinha como sentença por seus crimes a morte.

Uma canção linda e suave começou a ecoar. Procurei a origem da melodia. Algo havia se movido sob a água. Gael me puxava pela mão. Vários movimentos lúgubres surgiram ao nosso redor. A sedução da melodia era irresistível.

— Não preste atenção! Alma? Está me ouvindo?

Gael estava me segurando com força e só então percebi que eu estava tentando me soltar dele. Mas ele estava indo na direção errada. Eu queria seguir a melodia e ele estava se afastando dela.

— Olha para mim. — ele me fez encarar seus olhos. — Não preste atenção no som. São as sereias. Concentre-se em outra coisa. Não olhe nos olhos delas!

Ele me trouxe de volta à realidade. A voz de uma sereia atraia o seu coração para que os olhos dela pudessem te afogar.

Nossas passadas eram firmes rumo à praia, as criaturas estavam nos cercando sob a água. Pela visão periférica eu podia ver as caudas se agitando à superfície tentando convencer os passantes que o afogamento era aconchegante e gentil, como chocolate-quente no inverno. Chegava a doer o esforço de resistir à doçura da canção.

Algo frio e molhado se enroscou em meu tornozelo e eu quase perdi o equilíbrio, mas Gael chutou a criatura e ela me soltou.

Então uma sereia agarrou as pernas dele ao mesmo tempo em que outra me puxava para trás. O encanto sobre a água se quebrou e eu afundei com tudo. O peso na sereia me arrastando cada vez para mais fundo.

Corri os dedos pela minha cintura e apanhei a adaga. Num movimento brusco, acertei a lateral da sereia que me abraçava. Senti o impacto da lâmina penetrando a textura das escamas. O aperto dela afrouxou e me soltei dos braços da morte.

Nadei para a superfície e inspirei com ânsia o ar que entrou rasgando nos meus pulmões.

Como se luta com um inimigo para o qual não se pode olhar?!

Elisa me puxou para cima. O mar voltou a ser o meu chão. Gael acabava de deixar cair um corpo rosa alaranjado. Cabelos ruivos como fogo combinavam perfeitamente com as escamas que lhe cobriam o corpo.

A noite ficou em silêncio. Só mais alguns metros e estaríamos fora do mar. Só se ouvia o chapinhar dos nossos passos sobre o chão molhado.

Num ápice, um salto quebrou a calmaria. O objetivo dela era o rosto. Mas a sereia acabou agarrando um braço e a camisa do Gael. De um tom furta cor que misturava roxos, azuis e verdes, lembrando o casco de um escaravelho, seu corpo era feito de paetês. Ela era linda!

Elisa cravou sua faca nas costelas da criatura sem nenhuma hesitação, bem onde uma estrela do mar tinha decidido se fixar. A sereia guinchou e se contorceu, voltando às águas sem jantar.

Finalmente alcançamos a areia macia e fofa da praia.

— Não consigo pensar numa boa forma de morrer. — Elisa sibilou na direção da água. — Mas afogada não, obrigada!

— Desculpem. — eu falei. — Era para ter sido uma chegada rápida. Discreta. As sereias não teriam tido tempo de nos alcançar se eu não tivesse travado lá atrás.

— Ninguém sabia como a sua magia iria reagir daquela forma. — Elisa cruzou os braços e fez uma careta engraçada. — Tá, ela podia ter escolhido um lugarzinho melhor para dar chilique, mas fazer o que? Vocês, guardiões, sempre arranjando problemas!

Ela estava de bom-humor e fazendo piada segundos depois de quase termos morrido! Gael seguia no mesmo tom. Não queria topar com alguma coisa que conseguisse assustá-los! Não queria mesmo!

 Não queria topar com alguma coisa que conseguisse assustá-los! Não queria mesmo!

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É isso por hoje povo lindo! 

Alma está em casa. Agora é esperar para ver se essa casa será ou não um lar. 

Bjos e até a próxima.

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora