26 - Corra!

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Um suor tão frio quanto um grito de pavor escorreu pelo meu corpo. Eu estaria tremendo se não tivesse tanto medo de me mexer. Aquela coisa, agachada no chão, continuava me encarando.

Ela se ergueu, muito lentamente, até ficar com a cabeça na altura do meu rosto. A barriga era tão funda que chegava a colar nas costas.

A coisa deu um passo débil à frente, eu dei um atrás. Ela encheu o peito e rugiu subitamente na minha cara. O cheiro áspero de putrefação fez os meus olhos lacrimejarem.

Comecei a correr.

Escorreguei em alguns cacos de vidro e ouvia os espelhos se estilhaçando atrás de mim no impacto com a criatura.

Voei pelo buraco aberto na parede. A lembrança dos caninos protuberantes naquela boca me incentivava a cada passada. O meu corpo se movia com vida própria, agindo por puro instinto.

Se era aquilo que tinha atacado o Gael e agora estava atrás de mim, o que isso significava? Que ele estava morto? Não, não, não. Essa ideia era insuportável demais, me recusei a considerá-la.

Me esquivei dos obstáculos que surgiam à minha frente e o carrossel se assomou sobre mim. Me enfiei entre suas peças. Eu não conseguia localizar a coisa.

Uma batida me fez encolher e olhar para cima. O bicho estava no telhado do carrossel guinchando e grasnando, e perfurou o espaço bem acima da minha cabeça. Um grito rasgado saiu da minha boca e minha blusa ficou presa em alguma parte do brinquedo, quase me fazendo cair com o puxão desesperado que dei.

Eu estava completamente desorientada, não sabia para onde estava indo, só corria o mais rápido que conseguia. Repentinamente, senti um golpe brusco na lateral do corpo e perdi o equilíbrio, caindo de costas no chão com um baque surdo.

A máquina de fumaça deveria estar ligada, porque estava tudo cheio de névoa. Os meus dedos tateavam cegamente ao redor tentando encontrar algo para usar como arma.

Caminhando sobre as quatro patas, vi a coisa se aproximar, espumando com a boca aberta. Aquilo munido de garras e dentes e eu, de carne macia e fresca. Seria uma morte horrenda. Eu só podia torcer para que fosse rápida, porque indolor não seria. Devorada por uma criatura invocada do mais profundo subconsciente dos meus pesadelos.

Uma mão se sobressaiu subitamente, agarrando a bocarra aberta. O animal urrou e escorneou enquanto sua cabeça era forçada acima do limite. Tudo o que eu queria era me afastar daquela visão, mas sabia que ela nunca se afastaria de mim.

Ele quebrou o pescoço do animal e os urros se silenciaram. Exausto, com a respiração pesada, Gael passou por cima do corpo bestial inerte e desabou de joelhos à minha frente.

— Você está bem? — segurou o meu rosto entre as mãos.

— Acabou? — foi tudo o que consegui dizer.

— Acabou.

Então senti o peso do choque me atacar com violência, como um tapa na cara. Eu me lancei ao pescoço dele, tremendo e soluçando. Ele me envolveu com os braços e as asas. Um colo quente, um casulo de proteção.

— Precisamos sair daqui. — sussurrou. — Está pegando fogo.

Não vi o que aconteceu em seguida. Não fazia ideia de por onde tínhamos passado, ou como tínhamos chegado lá. Quando dei por mim, estava sentada na calçada, distante da aglomeração de gente, ambulâncias e bombeiros. A fumaça subia alta no céu. O parque inteiro estava em chamas. Gael estava de joelhos à minha frente, acariciando o meu rosto.

— Por favor, fala comigo. — suplicou.

Pisquei várias vezes e olhei para ele. Por quanto tempo fiquei atônita? Ele me beijou a face e sorriu.

— Está tudo bem agora, já acabou. — ele não parava de afagar as minhas bochechas.

Concordei com a cabeça. Ele pousou as mãos sobre as minhas, fechadas em punho, comprimidas fortemente contra o peito.

Carissimi. Deixe-me ver. — a voz e os movimentos eram suaves, como se tivesse medo de me assustar.

Eu relaxei os punhos e ele voltou os olhos os cortes nas palmas.

— São superficiais, mas este — tinha um talho fundo no meu antebraço. —, vai precisar de pontos. Está se sentindo melhor?

— Uhum. — mas não sei se é verdade.

— Preciso levar você ao hospital.

Ele me ajudou a levantar e foi só aí que o vi de verdade. Dois vergões inchados e sujos no pescoço, a blusa em frangalhos, presa só pela parte da frente deixava o desenho de suas costas à mostra. As calças exibiam buracos com, provavelmente, arranhões ou cortes por baixo. Uma mancha marrom escura cobria a barra da camisa.

— Está sangrando?!

— Foi superficial.

— Então por que está pressionando?! Eu quero ver.

— Estou bem, Alma.

— Está sendo evasivo para esconder como está ruim!

— Ok. Tudo bem. — deve ter percebido o meu desespero porque resolveu me deixar ver.

Um beiço em carne viva na barriga, chorando em carmesim. Era um talho muito feio. Muito feio mesmo! Comecei a ofegar.

— Está tudo bem! Alma, está tudo bem! Vai precisar de pontos, eu sei, mas está tudo bem! Depois que estiver limpo vai parecer bem melhor, eu prometo. Eu vou ficar bem, ok? Alma?

Tentei me acalmar, forçando o ar a continuar fazendo seu trajeto natural. Ele ia ficar bem, ele tinha que ficar bem!

Gael me levou ao hospital e a minha mente voou para o pesadelo. O que era aquela coisa que tinha nos atacado?! Ela pertencia a um mundo menos real, um mundo de fantasia.

Decidi naquele instante que, tirando o rapaz com asas e olhos de sol e floresta encantada, eu queria distância do mundo imaginário.

Ledo engano. Eu mal fazia ideia que um dia estaria lá dentro. Eu mal fazia ideia do que ainda teria de enfrentar!

 Eu mal fazia ideia do que ainda teria de enfrentar!

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Bom dia! Cheguei com mais um capítulo para vocês.

Muito obrigada a todos que estão acompanhando, espero que estejam se divertindo com esse romance que começa a dar as caras na aventura.

Bjos!

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora