Cuidei dele por anos. Ensinei a controlar a sede, a ler o mundo com olhos de caçador e alma de pensador. Foi a única criatura, dentre todos que transformei ao longo dos séculos, que ficou. Os outros, ingratos ou simplesmente livres demais, partiram com o vento, traçaram seus próprios destinos sem olhar para trás, e eu não os culpo. A eternidade ao meu lado é uma âncora pesada. Mas Lúthien... ele ficou. E por isso, ele é meu filho. Não por ter nascido de mim, mas por ter escolhido me amar mesmo assim.

Nossa casa é um castelo antigo, escondido entre vales e névoas que confundem os olhos humanos.
Ele parece vivo às vezes, sussurrando memórias entre as pedras frias. E por mais disfuncional que sejamos, ainda somos uma família. Estranha, disforme... mas real.

Merga, metade bruxa, metade outra coisa que nem ela mesma sabe explicar, é parte disso também.
Ela é o fio de luz entre nossas sombras, nos salvou quando ninguém mais ousaria estender a mão. E mesmo sendo mestiça, algo que outrora causaria repulsa aos mais ortodoxos, ela é sangue da nossa casa. Temos as nossas rixas, especialmente entre ela e Eldorian, que parecem disputar o título de criatura mais irritante do mundo. Mas no fundo, se respeitam, ou ao menos fingem bem o suficiente para que funcionem.

Apenas eu e Merga saímos de casa com frequência.
O sol, para Lúthien, é uma sentença de dor.
Ele não possui o dom que herdei de minha linhagem pura. Sua pele queimaria ao toque da luz dourada. E, embora sinta pesar por isso, confesso que há certo alívio em saber que ele não se arrisca. O mundo lá fora ainda é cruel, ainda há caçadores. Ainda existem aqueles que fariam qualquer coisa para cravar uma estaca em nossos corações apenas para provar que conseguem.

E às vezes... Quando a noite se esconde entre os batimentos do mundo, e todos dormem, até mesmo os mortos, eu fico sozinho em meus pensamentos.
Sento-me diante da lareira apagada, as chamas apenas lembranças em minha mente, e me pergunto:

Por que ainda estou aqui?
Depois de séculos... Depois de viver o amor nos corpos e o vazio nas almas... Depois de assistir à humanidade ascender, ruir, se reconstruir...
O que ainda me prende a essa existência?

Será que há um propósito escondido nas tramas da eternidade? Ou tudo que vivi foi apenas um mosaico de experiências sem sentido, coladas pelas mãos do tempo?

Divago.
Horas.
Talvez dias.

Quem sabe séculos vividos em um só suspiro.

Minha mente se perde entre rostos esquecidos, vozes que um dia me juraram amor eterno e hoje nem mesmo ecoam mais na minha memória. O amor dos outros sempre foi uma promessa vazia. E, mesmo assim... Uma parte silenciosa em mim, antiga, adormecida, quase extinta, ainda espera.

Espera por algo que rompa o ciclo. Que atravesse as muralhas da minha alma e me mostre que ainda posso sentir. Algo, ou alguém, que seja capaz de tocar o centro do que sou.

E, nesse dia… Nesse único e improvável dia…
Talvez eu entenda por que continuo existindo.

Hoje, retorno.

Após uma década longe do único lugar que ouso chamar de lar, minha presença cruza novamente os portões do mundo que me viu nascer, ou, mais precisamente, emergir da eternidade.

Viajei para a América Latina. O calor me é indiferente, o sol, um inimigo antigo com quem aprendi a manter distância, mas as noites daquele território ainda carregam o murmúrio da selva e a memória de criaturas que resistem ao esquecimento. Fui visitar antigos conhecidos,  remanescentes da linhagem pura, como eu. Tão escassa quanto a fé verdadeira no coração dos homens. Manter contato com eles não é apenas cortesia... é preservação. Nossa história precisa sobreviver, mesmo que apenas na lembrança de quem já deixou de contar os anos.

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