Tributo ao Rei

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A muralha que cercava Cargia era tão imponente quanto a fama do seu exército, os mercadores conhecidos de Bernard passaram sem problemas depois de apresentar um passe feito de metal e com a desculpa de que não queriam correr o risco de serem roubados na multidão do festival, pequenos grupos de soldados entraram com eles.

Depois de passar uma pequena missão para Athos, Naiáde se enfiou dentro de uma carruagem e se cobriu com tecidos e o que pudesse encontrar, em poucas horas todos já tinham se infiltrado e pôde respirar com um pouco de tranquilidade. Os sons estavam abafados pelo lugar difícil que escolheu como esconderijo mas ainda conseguiu ouvir um murmúrio sofrido seguido por um choro. Se espremeu para fora e abriu a pequena janela para espiar, uma mulher estava lá, na carruagem ao lado, o rosto coberto por um véu fino e chorava como criança.

— Ei.— sussurrou chamando a atenção da moça, não parecia mais velha do que Naiáde.— Por que está chorando?— questionou ela.

— Você também está numa carruagem a caminho da capital real. Não sabe o que sua presença aí significa?— devolveu a pergunta com grosseria. Naiáde captou cabelos compridos e escuros por baixo do véu, e vislumbrou parte do rosto da mulher.

— Eu não estou aqui por causa do festival, eu moro aqui. Só estou voltando pra casa.— mentiu dando um pequeno sorriso amigável e observou a mulher reprimir o choro e começar a secar as lágrimas.

— Então não entenderá o meu sofrimento.— murmurou, Naiáde mordeu a língua para evitar revirar os olhos e ofender a moça.— Quando um vilarejo não tem ouro para presentear, mandam a segunda opção preferida de Sua Majestade, uma mulher.— continuou a mulher, Naiáde arregalou os olhos em surpresa genuína, dariam uma mulher para Ithalos? Para quê?

— Espere, então...

— Sim, eu nunca mais voltarei para casa. As mulheres entregues no palácio nunca voltam.— disse rápido atropelando as palavras, Naiáde ficou em silêncio enquanto puxava da memória informações relacionadas, mas por mais que tentasse tinha ouvido muito pouco sobre o festival do tributo. Não era uma festa que seu pai lhe permitia participar.— O rei não tem a fama de tratar bem suas concubinas. Elas não vivem muito depois que passam pelos portões.— continuou num sussurro carregado de sofrimento.

As palavras da mulher pareceram tão assustadoras quanto uma maldição, sua experiência como concubina não era nada parecida com aquilo. A ideia passou pela cabeça subitamente e mordeu o lábio para evitar o sorriso que tentou se formar. Aquela mulher seria dada ao rei, e se estivesse no lugar dela poderia finalmente cumprir sua promessa e garantir a segurança da família.

— Eu estou disposta a assumir seu lugar.— disse sem se atrever a pensar muito a respeito, ou perderia a coragem.— Não me importo de ser oferecida ao rei como tributo.— completou tentando parecer despreocupada, e encarou a mulher, mas ela não olhava de volta. Ao invés disso seus olhos estavam fixos em direção a frente da carroça, mais especificamente na figura alta e com um rosto retorcido de raiva que a encarava como se tivesse acabado de cometer um crime.

— Você vem comigo.— disse Reed e tomou o pulso de Naiáde puxando em seguida, mas apesar da aparente irritação ele não apertou ou causou alguma dor. Seguiu o guarda em silêncio por algumas ruas e se sentia mais apreensiva a cada segundo. Não queria que Reed a entendesse mal, não queria que pensasse que estava se oferecendo ao rei que desprezava por indecência, mas de certa forma estava. Se assustou quando sentiu o corpo ser empurrado contra uma parede e olhou ao redor com rapidez. Era um beco, a direita da rua principal, sentiu o cheiro de pães no ar e se tranquilizou ao conseguir identificar exatamente onde estava.— Naiáde, tenha em mente que preciso de muito autocontrole para estar conversando com você ao invés de optar por uma medida drástica.— disse ele ríspido e recuou um passo. Naiáde observou as reações do corpo do homem, a respiração apressada, as mãos inquietas, o rosto que mesmo com a barda de alguns dias ainda era bonito, não queria discutir com ele, mesmo que pudesse.

— Não sei o que está pensando mas se ficou tão irritado é provável que esteja me interpretando mal.— começou em voz baixa.

— Então o que eu deveria pensar? Não há uma interpretação do que disse que pareça minimamente aceitável.— retrucou e passou a mão entre os cabelos, a imagem de Reed irritado causou reações que não deveria causar e se obrigou a morder o lábio e respirar fundo para acalmar o corpo.

— Só... Me pareceu uma boa oportunidade.— murmurou.

— Me explique.

— Aquela mulher vai ser entregue como tributo ao rei, se eu tomasse o lugar dela poderia...

— Basta.— disse com amargura, mas o tom autoritário obrigou Naiáde a se calar.— Então é aceitável que corra o risco de ser violentada se houver uma chance de matar o rei ? Entende o quão arriscada é essa idéia? Chegou a considerar pedir minha opinião antes de tentar uma tolice dessa? Você pode morrer lá, e eu não chegaria a tempo para te ajudar.

— Não importa. Eu dei minha palavra ao rei Albert que levaria a coroa. Se esse for o preço, então que seja.— disse mais alto mas sua determinação morreu com o olhar do homem e pela primeira vez sentiu medo de Reed, e da possibilidade daquele olhar cair sobre si com decepção.

— Eu disse a ele que era uma péssima ideia.— murmurou baixo mas Naiáde estava perto o bastante para ouvir até às respirações pesadas do guarda. O que ele quis dizer com aquilo? Queria perguntar mas sabia que não poderia lidar com Reed, além de ser maior e mais forte, se importava em ferir os sentimentos dele mais do que já havia feito.— Vamos para a hospedaria.— disse com frieza e passou a caminhar fazendo o caminho de volta a rua principal.

Naiáde se arrependeu das palavras no segundo que as pronunciou, mas era tarde. No lugar dele também ficaria com raiva mas não iria embora sem extravasar a frustração. Seguiu Reed a dois passos de distância por todo o caminho e depois de voltarem até a carroça, o acompanhou até a hospedaria menos conhecida da cidade onde poderiam preservar o anonimato.

O silêncio do homem era um martírio, mas não tinha a mesma coragem que teve uns dias atrás se esgueirando pelo acampamento até a tenda, entrou no pequeno quarto que Reed conseguiu com a senhora Amélia, a proprietária e esperou que ele a acompanhasse mas não aconteceu.

— Descanse, vou estar no quarto a direita.— disse e recuou se dirigindo para o outro cômodo mas parou abruptamente.— A senhora disse que não servem o jantar aqui, daqui a algumas horas venho te buscar para irmos comer em algum lugar.— disse ainda com frieza mas o coração de Naiáde se aqueceu um pouco, ele não estava abandonando sua promessa de cuidar dela e esse simples e doce fato já fez que seu apreço pelo homem aumentasse um pouco mais.

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